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Traços e versos de um poeta

Antologia 'Cantos de contar' é ilustrada por desenhos inéditos a lápis, feitos por Alberto da Cunha Melo, junto a 56 poemas extraídos de três dos seus livros

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Novembro de 2012

Alberto da Cunha Melo manteve seus desenhos no âmbito doméstico

Alberto da Cunha Melo manteve seus desenhos no âmbito doméstico

Imagem Reprodução

O fac-símile de manuscrito que serve de introdução ao novo livro de Alberto da Cunha Melo antecipa ao leitor uma faceta artística sua menos conhecida. Ele principia essa nota pessoal, datada de 20 de abril de 1979, desabafando: “Nenhuma linha escrita. Tenho desenhado freneticamente, como uma compensação”. O fato de não ter aspirações profissionais nas artes visuais permitiu que o poeta travasse uma relação amena com seu próprio traço. No entanto, esse aparente descompromisso não o impediu de ilustrar obras de diversos autores, como Sete estórias sem rei, de Mário Souto Maior, além dos seus próprios livros. Em Cantos de contar, antologia recém-lançada pela editora Paés, 28 dos seus desenhos originais, feitos a lápis, aparecem nas páginas, junto aos 56 poemas selecionados.

Organizado por Cláudia Cordeiro, professora de Literatura Brasileira e viúva do poeta, o livro encerra um hiato de seis anos sem lançamentos ligados ao pernambucano, cuja última publicação em vida foi O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos, em 2006. Obviamente, o protagonismo continua sendo da arte verbal, aquela à qual se dedicou com afinco e racionalidade. Filho do poeta Benedito Cunha Melo, Alberto se viu na tradicional encruzilhada que envolve a ideia de superação da figura do pai e, logo cedo, optou pela afirmação na diferença. Enquanto o patriarca havia se destacado por sonetos e trovas, ele escolheu como predominante em sua produção poética um metro menos usual, o octossílabo.

Quando questionado sobre esse aspecto pelo jornalista Astier Basílio, que pontuava se não era tempo de arriscar outros formatos, considerando a consagração já alcançada pelo poeta, Alberto da Cunha Melo explicou existirem outras razões para essa preferência estética: “O octossílabo dominou minha poesia em duas fases, na primeira e terceira, talvez porque tinha a cadência prosaica da conversa, do desabafo, não retórico, da confidência, enfim”. Essa explicação remete aos versos de Ribeiro Couto – em um quarteto octossílabo – que, confessamente, serviu como norte poético de sua produção: “minha poesia é toda mansa/ não gesticulo, não me exalto/ meu tormento sem esperança/ tem o pudor de falar alto”.

Tal serenidade, proposta pelo poema de Couto, atravessa a escrita de Alberto da Cunha Melo, que passeia por conteúdos variados, indo do universo clássico àquele promovido pela comunicação de massa. Para o autor de Yacala, “tudo é tema”, contanto que a escrita seja rigorosa. Não à toa, foi muitas vezes comparado a João Cabral e fazia uso pessoal da fórmula 10% inspiração e 90% transpiração para a criação artística. Segundo Alberto, o mais preciso, em termos de arte literária, seria recomendar inspirar 10% de conteúdo e expirar 90% de realização formal.

Por trás das convicções do escritor está uma identificação consciente com os construtivistas, os formalistas russos e os estruturalistas, aparato teórico e estilístico que trouxe para o seu modo de produção específico. Do ponto de vista temático, são recorrentes em sua obra os diálogos com a filosofia, como vemos em Camuflagem nietzschiana; com o cinema, caso do texto Um corpo que cai; e com a própria literatura, tal qual apontam os poemas A João CabralRelendo Camões e Edgar Allan Poe.

Esses três poemas estão presentes em Cantos de contar, seleta que é complementada por uma longa entrevista coletiva concedida pelo autor a estudiosos de Literatura. As questões foram enunciadas por Alfredo Bosi, Alcir Pécora, Deonísio da Silva, Evandro Affonso Ferreira, Ivan Junqueira, Isabel Moliterno, Ermelinda Ferreira, Ivo Barroso, José Nêumanne Pinto, Mário Hélio, entre outros. A conversa só havia sido publicada, anteriormente, em versão reduzida, na Cronos, revista da pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. As respostas do poeta mostram ao leitor que, além de criterioso em seu processo criativo, ele era muito reflexivo no tocante à própria obra. Também colabora para rememorar sua trajetória artística, iniciada em 1966, quando o escritor foi revelado pelo poeta e crítico César Leal, no suplemento literário que ele editava no Diario de Pernambuco

GIANNI PAULA DE MELO, repórter da Continente Online.

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