Obras de Renata, Noronha e Ênio podem ser conferidas junto com outras na exposição Emoção de lidar, em cartaz no museu. A mostra apresenta um breve panorama do que está sendo feito hoje em dia nos ateliês terapêuticos da instituição. Nela, é possível ver diferenças significativas com as obras do período histórico da instituição, que vai de 1952 a 1999 (ano da morte da fundadora Nise da Silveira). Esse acervo foi tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em setembro deste ano, o ateliê de pintura completa 70 anos de atividades ininterruptas.
“A atual exposição busca mostrar a ideia do museu vivo. Todo dia, há uma nova produção dos nossos clientes. É um acervo que não é voltado para o passado, ele está sempre se renovando através das expressões mais profundas do ser humano”, comentou Luiz Carlos Mello, diretor e curador do Museu de Imagens do Inconsciente. Resultado de um trabalho em equipe e com custo praticamente zero, a exposição dá visibilidade e voz aos frequentadores atuais, sendo a primeira vez em que o museu expõe um conjunto mais amplo dos trabalhos deles. Até então, havia uma participação pontual das obras atuais no contexto das produções expostas.
“A gente sempre tem muito cuidado quando o autor é vivo, porque trabalhamos com direitos autorais. Hoje, existe mais esse reconhecimento da autoria. As obras que fazem parte do período histórico são, de certa maneira, de domínio público, porque os próprios autores e seus familiares já morreram. Mas os novos, não. Precisamos de autorização para cada obra exposta”, comenta a coordenadora de Projetos do Museu, Gladys Schincariol. Sinal dos novos tempos, o museu hoje se depara com questões específicas, diferentes do período de Nise da Silveira.
Entre elas, estão o reconhecimento da autoria do artista e os próprios direitos autorais, que impuseram a autorização do uso de imagem; o contexto da reforma psiquiátrica, que promoveu a ressocialização dos doentes e sua integração ao seio familiar, diferentemente de antes, quando a maioria dos pacientes vivia interna; o advento da medicalização, que, de certo modo, provocou um esvaziamento da terapia ocupacional; e o próprio contexto da pesquisa científica, que impôs a submissão dos projetos de estudos com seres humanos nos comitês de ética e o anonimato às fontes entrevistadas. Para a realização desta reportagem, por exemplo, os artistas do museu consentiram ser mencionados e divulgar suas obras.
Paciente Enio de Carvalho começou a desenvolver pinturas quando Nise da Silveira estava viva. Foto: Marcos Michael
“No caso do Francisco Noronha, que trabalha os chakras nos seus desenhos, você vê que a obra dele aparece mais em termos teóricos, indicando um campo de investigação bastante interessante relacionado à espiritualidade. Porém, é delicado se fazer estudos científicos sobre o frequentador atual, porque qualquer coisa que você vá publicar sobre o cliente vivo precisa passar hoje pelo comitê de ética”, exemplificou Gladys. Embora as obras produzidas no museu tenham valor artístico, ela destacou que a proposta não é formar artistas, e, sim, tratar das pessoas que, apesar do sofrimento, enfrentam os seus problemas com criatividade na busca por um caminho de cura.
O caso de Ênio de Carvalho é interessante. Internado por 11 anos no Centro Psiquiátrico Pedro II, ele começou a desenvolver a pintura na época em que Nise ainda estava viva, sendo um dos poucos que possuem obras datadas do período histórico. Com diagnóstico de esquizofrenia paranoica, ele começou a apresentar melhoras significativas depois que passou a frequentar o ateliê, a partir de 1995. “Quando crio uma obra, não copio ninguém. Quero fazer a minha criação e deixar que a mão vá livremente pintando para fazer aparecer todo o meu interior, como se eu estivesse copiando comunicações e visões internas”, contou.
Hoje, Ênio mora sozinho num apartamento em Copacabana e frequenta três vezes por semana o museu, onde costuma pintar quadros a óleo e, algumas vezes, trabalhar com argila. Quando os desenhos são produzidos em casa, ele tem a preocupação de levá-los para o museu, a fim de serem preservados. “Antigamente, eu vendia os meus quadros para um médico porque não tinha benefício. Fiquei muito sentido de ignorar o museu porque tudo o que conto é uma história interessante. Fiz 40 trabalhos grandes e deixei para lá. Eu busco contar a história da minha insistência de mostrar que nem tudo está perdido, sabe? Mostrar que, de uma coisa ruim, é possível causar uma explosão de coisas bonitas. Quando eu vier a falecer, sei que meus trabalhos ficarão no museu e que as pessoas vão valorizá-los”, afirmou.
Criado em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente foi motivado pela riqueza do material produzido permanentemente pelos pacientes. A intenção era congregar as obras realizadas nos ateliês de pintura e modelagem para o estudo das imagens e símbolos através da convergência de olhares entre diversas áreas do conhecimento, além do acompanhamento dos casos clínicos através dessa produção. Hoje, ele se situa num híbrido entre arte e ciência. Embora funcione nos moldes de um museu, com uma equipe formada por uma museóloga e seis estagiárias destinadas a realizar a organização, a conservação e o tratamento das obras, está inserido na rede municipal de saúde do Rio de Janeiro com uma proposta terapêutica para os usuários do sistema com problemas psíquicos.
GUARDIÃ DO ACERVO
Hoje, o museu conta com cerca de 360 mil obras da fase histórica e da atual. Todas são classificadas e guardadas em espaços separados por artistas. As pinturas da fase mais antiga ficam num quarto climatizado, para manter a temperatura do espaço e garantir a sua preservação. Além da catalogação, passam por um trabalho de reacondicionamento para evitar danos futuros. Já as obras mais recentes são submetidas a uma conservação reparadora, que consiste na higienização, manutenção das condições ambientais e acondicionamento.
“O objetivo daqui nunca foi ser um museu de tratamento das obras. Então, no começo, não havia um acompanhamento muito rígido do movimento delas, nem a importância da conservação. As pessoas tiravam as obras do lugar sem ter noção do que isso poderia causar na organização. Há alguns anos, acompanhamos o movimento delas em todos os momentos”, exemplificou a museóloga Priscilla Moret. Tamanho cuidado e seriedade no trabalho lhe rendeu da direção o apelido de “governanta alemã”, dito de forma carinhosa. O acervo das obras ainda está sob a responsabilidade do Ministério da Saúde, do tempo ainda em que o museu fazia parte da estrutura federal.
“O nosso museu é um dos melhores lugares para se estudar Jung. Foi isso que me trouxe para cá, em 1974, quando comecei a trabalhar com Nise a fim de comprovar cotidianamente a teoria dele sobre o inconsciente coletivo, essa herança psíquica que temos. Lá, você percebe que a palavra não dá conta desse grande universo, então a imagem vem também como outra linguagem, muito mais consistente que apenas a palavra. Não querendo desmerecer a palavra, mas a imagem diz muito mais”, argumentou Gladys, que é psicóloga. O afeto, o convívio, a aceitação do outro e a liberdade que o cliente tem de se colocar permeiam o trabalho do museu.
MANDALAS E TEMAS MÍTICOS
A produção em série de imagens circulares ou tendendo ao círculo foi um dos primeiros desafios de Nise. “A analogia era extraordinariamente próxima entre essas imagens a aquelas descritas sob a denominação de mandala, em textos referentes às religiões orientais”, disse. O intrigante, para ela, era isso vir da produção de esquizofrênicos, já que a cisão das funções psíquicas é uma das características principais da doença, conforme a psiquiatria dominante. O fato levou Nise a enviar uma carta para Jung, em 1954, com fotos das obras, a fim de explicar o que se passava e lhe pedir ajuda. “Foi um dos atos mais ousados da minha vida”, revelou.
A resposta de Jung veio logo em seguida, abrindo novas possibilidades de compreensão sobre a esquizofrenia. “A psiquiatria tradicional permanece fixada diante dos graves sintomas de dissociação. Assim, não vê no esquizofrênico nada mais além das ruínas. Jung pesquisou por trás das ruínas”, argumentou Nise. A troca de correspondências entre a brasileira e o suíço também revelou a aproximação das pinturas com os estudos junguianos sobre os arquétipos, levando Nise a realizar depois uma temporada de estudos no Instituto C.G. Jung, em Zurique, onde também foi realizada uma exposição, em 1957, sobre a produção imagética dos esquizofrênicos.
Nas aproximações das produções com elementos míticos, Adelina Gomes foi um exemplo clássico. O mito da Dafne se revelou na sua obra, ao retratar em diferentes quadros a metamorfose da mulher em vegetal. Ninfa da mitologia grega, Dafne entra em pânico e foge diante da paixão expressa pelo deus Apolo. Correndo para junto da mãe, esta a transforma em loureiro, compondo a coroa de Apolo e dos poetas, conforme a mitologia. Ao estudar a obra de Adelina em paralelo à sua história de vida, Nise descobre, através de relatos familiares, que a paciente tinha sido proibida de namorar o homem que amava, quando jovem. Tímida, ela acabou cedendo ao veto, sendo acometida de uma tristeza permanente. Tempos depois, ela sofreu uma crise violenta que a fez estrangular a gata de estimação da casa, levando-a ao internamento. O animal viria a ser tema das suas primeiras pinturas no ateliê.
Segundo Gladys, é muito difícil entender o significado de uma obra isolada dos clientes do museu. Ela só tem sentido se analisada no conjunto com as demais obras. “A importância de Nise foi justamente ter guardado as obras para que pudessem ser avaliadas no seu conjunto. Havia um problema científico a investigar tanto para ela quanto para nós hoje em dia. Bonito ou feio, não importa. O que importa é o processo de criação e de expressão, mais que o resultado final, como a obra foi desenvolvida e como o cliente trouxe aquele conteúdo”, explicou.
Renata Inocêncio é uma das clientes mais jovens do museu. Com 37 anos recém-completos, seu olhar sobre a pintura revela muito mais conteúdo do que sua materialização é capaz de mostrar. Isso porque ela imagina não só a situação em torno da imagem retratada, como também descreve espaços e pessoas que não estão necessariamente na cena representada. Já premiada pelas suas obras, ela diz gostar do pintor impressionista Claude Monet (1840–1926), de quem recebe influência pelas cores e formas usadas. “Costumo pintar com o dedo. Só quando é detalhe uso pincel. Eu gosto da mão. Às vezes, eu pintava e sentia formigamento na ponta dos dedos. Não era pela tinta. Tem quadros que eu pinto, mas sei que não fui eu. Já vi uma casa como se fosse num chá de tarde. Lá, tem uma mesa com varanda, pessoas de época. Do lado da varanda, já vi que colocam uma mesa com louças finas. Vi um piquenique. Tenho vontade de pintar, mas ainda não fiz”, contou Renata. É uma das poucas clientes sem diagnóstico fechado.
Usuário antigo, Francisco Noronha aparece no filme Olhar de Nise, de Jorge Oliveira, entrando numa das cenas gravadas do depoimento de Nise da Silveira, em que presenteia a psiquiatra com um dos seus quadros. Com grande expressividade, seu trabalho apresentou mudanças ao longo do tempo. Das cores comumente utilizadas nas telas, ele passou a se expressar atualmente com lápis. “Começo meus desenhos pela cabeça, depois eu faço o pescoço e os ombros. Pinto homens e mulheres, seres da minha imaginação”, disse à Continente, num dos raros momentos em que se permite falar.
Demonstrando alguns sinais do Mal de Parkinson no dia a dia, ele impressiona a equipe do museu pelo controle das mãos quando desenha. Nesse momento, elas param de tremer. “Certamente, o Parkinson é devido ao excesso de medicamentos que ele tomou num período em que sumiu daqui e ficou internado num hospital ‘barra pesada’. Os neurolépticos atacam o sistema extrapiramidal, que é a base do cérebro e responsável pelos movimentos. Então, o excesso de neurolépticos dá crises parkinsonianas. O fato de parar de tremer, quando pinta, deve ser pela ligação dele com as imagens. A pessoa se supera”, disse Luiz Carlos Mello.
Ao comentar sobre a produção do museu, o psicoterapeuta e artista plástico Lula Wanderley disse que o debate em torno do que é arte se torna esvaziado, por não haver uma definição exata da loucura nem da arte para comparações. “São dois campos em que a única referência que você tem é a vida. As pessoas costumam pegar na intencionalidade do artista. Como você vai medir a colocação do sujeito no mundo sem intencionalidade? É difícil. Ele vai fazer arte para a vida e com a vida o tempo todo. Isso fica muito próximo de uma intencionalidade intensa. Na época de Raphael e de Emygdio, você tinha a arte moderna, em que a grande característica era a expressão. E você expressa a sua relação com o mundo, o mundo em sua época. Uma coisa é certa: emociona como qualquer artista”, considerou o pernambucano.
A exposição Emoção de lidar pode ser conferida de segunda a sexta, das 9h às 16h. O Museu de Imagens do Inconsciente fica na Rua Ramiro Magalhães, nº 521, Engenho de Dentro. Mais informações pelo telefone (21) 3111.7471.