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Teatro paulistano, este poder paralelo

Em tempos de João Doria e ações de higienização na cracolândia, grupos de teatro mostram como São Paulo pode se humanizar mais

TEXTO Mateus Araújo

12 de Julho de 2017

Espaço do Teatro de Contêiner, da Cia. Mungunzá (SP)

Espaço do Teatro de Contêiner, da Cia. Mungunzá (SP)

Foto Victor Iemini/Divulgação

Nos seus escritos sobre espaço e teatro, o pesquisador José Simões remete aos olhares e às ideias do geógrafo Milton Santos (1926-2001) para analisar a relação entre a arte e o entorno no qual está fincada. Para Simões, o teatro serve de agente, capaz de modificar, construir e reelaborar, em seu tempo e linguagem, a vizinhança. É o ressignificar através da valorização da memória e do outro.

Em São Paulo, terceira maior capital do mundo, que padece com as dores da especulação imobiliária, artistas e grupos teatrais têm estabelecido, ao longo dos anos, um papel fundamental na luta pela defesa da cidade e das pessoas que nela vivem – a maioria excluída, invisibilizada. É o caso mais recente do trabalho da Cia. Mungunzá, que, no coração da Luz, um dos mais importantes bairros do centro paulistano, criou o Teatro de Contêiner, pedaço de sonho e resistência em meio ao cenário onde a desigualdade social é gritante. O projeto foi indicado, na última terça (11/7), ao Prêmio Shell de São Paulo na categoria Inovação, pelo potencial artístico e social desenvolvido (veja lista dos indicados AQUI).

Inaugurado em dezembro do ano passado, o teatro foi feito com 10 contêineres de navio, em uma espécie de estrutura modular. A obra custou R$ 250 mil e foi realizada com o dinheiro que a companhia juntou durante oito anos. Em meio às estruturas metálicas, duas paredes de vidro laterais ligam a cena e a plateia com as ruas e os transeuntes que circulam do lado de fora do espaço.

“A gente nunca teve uma sede, um espaço nosso. Sempre fomos muito mambembes. Depois de passar 2013 inteiro viajando com a peça Luiz Antônio – Gabriela, em 2014 conseguimos alugar um galpão no centro, no Bom Retiro, para poder criar um novo trabalho por meio de Fomento ao Teatro de São Paulo [edital municipal de incentivo à criação artística]. Foi a primeira experiência com um lugar nosso”, lembra o ator Leonardo Akio, um dos fundadores da Mungunzá junto a Lucas Beda, Marcos Felipe, Pedro Augusto, Sandra Modesto, Verônica Gentilin e Virginia Iglesias. O galpão alugado ficava perto de um centro de acolhimento, em que eram atendidos usuários de droga, imigrantes, prostitutas e demais pessoas em situação de vulnerabilidade social. “Ali, percebemos a importância da relação com o entorno. Passamos a abrir o processo e o espaço para aquelas pessoas.”

Aliás, a relação do teatro com o seu entorno é algo histórico em São Paulo. Se hoje a Cia. Mungunzá é um exemplo importante de agentes que colocam em prática ou que tomam como essência do trabalho essa geografia do afeto, da relação entre pessoas e espaço urbano, deve isso à trajetória de  grupos como o Teatro Oficina e Os Satyros, que trazem nas suas histórias a força do diálogo entre a cena e as comunidades paulistanas.

O Bixiga, também no centro da cidade, é o grande terreiro cênico do diretor Zé Celso Martinez Corrêa há quase 60 anos. Uma das mais importantes companhias brasileiras, o Teatro Oficina criou sua raiz na Rua Jaceguai acompanhando o desenvolvimento do bairro conhecido como redutos de portugueses, italianos e nordestinos. “É muito gradual a relação que o Oficina estabeleceu com o bairro. A primeira abertura com o Bixiga começou no final da década de 1970, quando o grupo convidou a arquiteta Lina Bo Bardi para fazer a direção de arte do espetáculo Na selva das cidades. Naquela época, estavam construindo o Minhocão [o Elevado Presidente João Goulart]. Para construir o cenário, que era montado ao longo da peça, Lina pegava os restos de demolição de sobrados derrubados para a construção da via, numa relação de troca de matéria”, conta a arquiteta cênica do Teatro Oficina, Marília Gallmeister.

Essa simbiose foi crescendo aos poucos. O teatro virou restaurante popular para os operários da obra do Minhocão. Em seguida, tornou-se acolhimento para nordestinos que vieram morar em São Paulo e assumiram espaço no elenco do grupo. “Eles traziam uma coisa que oficina até então não sentia: a luta pela terra. E aí foi outro contato com o bairro, a partir das novas realidades. O teatro foi ‘devorando’ muito a cultura nordestina, nessa antropofagia.”

No início dos anos 2000, a companhia assistiu ao Grupo Silvio Santos derrubar boa parte dos casarios que compunham o bairro, em ações da especulação imobiliárias – incluindo a primeira sinagoga de São Paulo. “Só ficou um prédio no fundo do terreno do Oficina, que virou uma ocupação popular”, lembra a arquiteta. “Naquele momento, estávamos ensaiando Os Sertões, e chamamos as crianças da ocupação para compor o coro infantil. Isso acabou criando o movimento Bixigão, com aulas de capoeira e alfabetização. As crianças foram alfabetizadas com Euclides da Cunha, e ali surgiu a nossa Universidade Antropófoga, uma escola de formação interdisciplinar. Mas tudo nasce através do teatro: arquitetura, iluminação, dramaturgia, botânica etc.”

O Bixiga também virou, literalmente, palco do Oficina, em Macumba antropófoga (2011) – que, no último dia 24 de junho, ganhou nova montagem, atualmente em cartaz na sede do grupo. A peça, extremamente simbólica neste sentido de troca e afetividade com o bairro, começa com um cortejo pelas ruas, que passa por lugares afetivos da vizinhança: da sede do antigo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), para evocar a memória da atriz Cacilda Becker, ao apartamento onde o escritor Oswald de Andrade morreu.

“Nesse cortejo, muita gente do bairro acabam entrando junto. Várias pessoas abrem as portas para a gente, recitam poesia. E isso foi criando um coro do próprio bairro, que acompanha a peça”, explica Marília. “O Zé sempre fala – e eu sinto também – que o Oficina só é o que é porque está no Bixiga: um bairro que tinha quilombo, tinha cultura indígena, foi um reduto boêmio, tem mais teatro por metro quadrado, é uma grande mistura.”

A poucos metros do Oficina, outro local que ganhou novos ares a partir da arte foi a Praça Roosevelt. Abandonada e maltratada, a região era, nos anos 2000, um dos lugares mais perigosos de São Paulo. “Depois das 19h, ninguém queria passar por aqui. Já era certeza de que seria assaltado”, diz o ator, diretor e dramaturgo Ivam Cabral, cofundador da companhia Os Satyros. Naquela época, após voltar de uma longa temporada em Portugal, o grupo decidiu criar, na Roosevelt, a sua sede. “Foi uma escolha estratégica. Queríamos encontrar um lugar complicado, e fazer como já havíamos feito antes, aqui, fazer a arte iluminar, modificar, transformar. O plano inicial era que, em cinco anos, a situação começasse a mudar nos arredores. Nós conseguimos isso em três.”

O marco dessa mudança e da reaproximação das pessoas com o local, conta Cabral, foi a estreia das peças Filosofia na alcova Antígona, quando passaram a ter um público mais expressivo, a ganhar prêmios e a se tornar um grupo importante na cidade. A movimentação da praça trouxe novas possibilidades de ocupação do espaço público.

“Os traficantes dominavam esse local que, na década de 1960, foi berço da Bossa Nova paulista. Nós sabíamos que era preciso humanizar de novo a Roosevelt. Aproximar novamente as pessoas dela. E fizemos isso de duas maneiras: primeiro, com uma mesa na calçada – nós chamávamos as pessoas para sentar e tomar um café ou uma cerveja – e, depois, criando um teatro que não tivesse porta entre a rua e a cena. São cortinas. Quem quiser, até hoje, entra nos Satyros e chega no palco”, lembra o diretor.

A partir de Os Satyros, outros grupos foram surgindo no local, a exemplo dos Parlapatões. Assim, a praça foi ganhando novos impulsos: bares, a SP Escola de Teatro, mercados e lojas chegaram à região revitalizando o entorno. “Nós tivemos que negociar e conquistar as pessoas que frequentavam a praça antes de nós. Aqui, hoje, é, geograficamente, um ponto de encontro das quatro regiões de São Paulo. Você vai ver gente do circo, da música, dos esportes. É o encontro de todo mundo.”

Dessa relação da rua com a arte, Os Satyros levam à cena até hoje a Roosevelt. A Trilogia da pessoas, por exemplo, cuja última parte, Pessoas brutas, estreou em maio e está em cartaz na sede do grupo, narra histórias de pessoas invisíveis e excluídas da grande metrópole. “Vários trabalhos nossos são inspirados nas pessoas da praça, nas histórias da praça. E muitos dos nossos atores vieram da praça: travestis, transexuais, por exemplo. Hoje, em Pessoas brutas, temos no elenco um ex-presidiário. Ele é o protagonista do espetáculo e está sendo alfabetizado por nós”, revela.

GEOGRAFIA DO AFETO
A experiência de troca e de aproximação com os moradores do Centro de São Paulo, a partir de 2014, foi o impulso para que a Cia. Mungunzá decidisse construir uma sede naquela região. Após levantamento feito entre terrenos públicos abandonados, o grupo encontrou o espaço a poucos metros do antigo galpão. Logo em seguida, conseguiu a autorização temporária (renovável por dois meses) da Prefeitura de São Paulo, à época da gestão de Fernando Haddad (PT). “Com a mudança de prefeitura, conseguimos renovar apenas uma vez. Atualmente, estamos sem autorização”, diz o ator Leonardo Akio.

Desde que se estabeleceram no centro, os artistas da Mungunzá acompanham o processo de gentrificação e higienização da região, através de ações de combate ao uso do crack. “É muito louco estar aqui. Todo dia há uma modificação; uma micro ou macro ação do governo. E isso só se percebe quando estamos aqui, porque essas coisas não reverberam na mídia”, conta.

“Um exemplo foi o dia 20 de maio: na madrugada da Virada [Cultural, evento que acontece anualmente na cidade, com 24 horas de atividades artísticas], houve a primeira maior dispersão policial na cracolândia. As ações começaram no domingo e continuaram na segunda. A polícia espalhou as pessoas e elas começaram a se agrupar em ruas menores, 'microcracolâncias'. Na terça-feira, chegaram tratores para destruir casarões e imóveis – com gente dentro, inclusive; e na quarta, teve lançamento de uma PPP (Parceria Público-Privada) habitacional, na região. Estamos no olho do furacão da especulação imobiliária.”

Segundo Akio, “as ações estéticas e higienistas” que se intensificaram desde o início de 2017, vão rapidamente mudando a cidade. “Revitalização é para onde não há vida. E está tudo acelerado”, afirma o ator. “Mas a gente resiste. E embora saibamos que somos um potencial gentrificador, porque estamos trazendo um teatro para o local, movimentando pessoas por aqui, estamos tentando diminuir ao máximo essa questão, criando um trabalho de afetividade”, explica. “Temos contato com os comerciantes; fizemos uma horta hidropônica, que é cuidada por um morador da região; fizemos uma quadra dentro do terreno em que estamos, para que todas as crianças da Ocupação Mauá venham jogar bola aqui; fazemos apresentações com ingresso populares.”

O diálogo constante com a comunidade tem feito da companhia um ponto de apoio para as pessoas. A cada ação da Polícia Militar, os atores tentam, de alguma maneira, criar uma interlocução que iniba a violência. “A gente tenta aparelhar todo mundo: fazemos debates intersetoriais sobre droga, abrimos o espaço para que os coletivos ativistas dos direitos humanos criem ações e até quando teve o ‘estouro’ da cracolândia, servimos de ponto de doação de roupa e alimentos”, conta o artista. “A gente sabe o quanto é perigoso e que podemos sofrer retaliações, mas fazemos o que achamos que é certo, de alguma forma.”

Para o psiquiatra Leonardo Ramos, que durante os últimos cinco anos trabalhou atendendo usuários de álcool e droga no Centro de Ação Psicossocial (Caps), no Bom Retiro, a ação criada pelo Teatro de Contêiner oferece aos moradores dessa região tão degradada a possibilidade de acesso legítimo à arte e a uma vida social. “A abordagem com pessoas em situação de rua precisa estabelecer uma empatia com o sofrimento delas e entrar na rotina. Digo isso porque as ações que fazíamos não eram uma abordagem direta, mas de atividades como uma roda de samba ou um jogo de futebol. Nesse sentido, se estabelece um vínculo e o usuário procura o tratamento de fato”, explica Ramos. “É preciso, antes de tudo, que nos tornemos parceiros das pessoas que moram ali e, a partir desse parceria, ter uma compreensão real daquelas vidas.”

Ao propor uma nova relação da cidade com a Luz, sem medo, opina o psiquiatra, a Cia Mungunzá lança um olhar humanizado para uma situação que os poderes públicos preferem estigmatizar através da violência. “O Contêiner não quer melhorar o entorno para se valorizar, mas para que exista, de fato, uma melhor qualidade de vida ali, que as pessoas participem da vida da cidade. Já fui ao teatro e vi crianças na rua brincando. E essa é a melhor transformação possível, diferente da nossa gentrificação paulistana, em que se constroem espigões caríssimos. As pessoas se isolam nos castelos e não vivem o entorno”, lembra. “A proposta, pelo que percebo, é diferente da Porto Seguro, que criou no Campos Elíseos [a poucas quadras da cracolândia] um teatro e um centro cultural e investe na gentrificação da região”, compara o Leonardo Ramos, se referindo ao grupo de seguradora nacional, que se estabeleceu há 40 anos no centro de São Paulo.

Atualmente, a empresa é uma das principais parceiras prospectadas pelo prefeito João Doria (PSDB) no processo de modernização da região. “Se entendermos que agrega valor, estamos dispostos a apoiar”, disse o presidente da Porto Seguro, Fabio Luchetti, em entrevista à Folha de S.Paulo, no último dia 27 de junho. Ele, no entanto, reclama ainda da falta de interesse das pessoas pelas ações culturais propostas pelo espaço. “Aqui você consegue atrair o morador da região?”, questiona a repórter da Folha. “Por incrível que pareça, não consigo atrair o funcionário. O indivíduo sai na hora do almoço, não tem tanto o que fazer por aqui, achávamos que ia haver fila de funcionários, e nada.”

Com uma programação voltada a produções de médio e grande porte, o Teatro Porto Seguro recebe mensalmente shows, espetáculos musicais e espetáculos de entretenimento, cujos ingressos, a depender da atração, variam de R$ 15 (meia-entrada) a R$ 150 (inteira). Além disso, o espaço conta com serviços de vans que levam o público da estação Luz do metrô ao teatro – alternativa criada para proporcionar comodidade às pessoas e evitar que elas passem pela cracolândia. 

MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador e crítico de teatro. Mestrando em Artes Cênicas pela Unesp.

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