Gênio? Ah, isso é coisa para Caetano e Millôr que, segundo Laerte, numa entrevista para o iG, beiram o inexplicável. Fazer o quê? O cartunista se acha perfeitamente explicável, mesmo praticando o crossdressing, que significa apenas se vestir ao contrário, segundo o Brasilian Crossdresser Club (BCC), do qual Laerte é membro viril. E o que isso tem a ver com humor, que é o objetivo desse texto? É que o site do BCC tem como primeira frase “Existimos pelo prazer de ser mulher” e, segundo Schopenhauer, o humor estaria fundamentado na incongruência entre o pensado e a realidade objetiva, entre duas coisas que, juntas, formulam um terceiro efeito. As Virgens de Olinda atraem todos os anos milhares de foliões porque estes se divertem com o pastiche: homens vestidos de mulheres. Os efeitos de humor estariam na incongruência de pernas cabeludas, mãos enormes e voz grossa, emulando durante a folia os trejeitos femininos, com resultados entre graciosos e grotescos.
Contraste, bizarrice, ironia, sarcasmo? Laerte quer descobrir uma feminilidade que seria negada ao homem, um apagamento de fronteiras entre o masculino e o feminino – que ele vê como impostura cultural. Para mim, telespectador, a cena era cômica, principalmente pelo ethos encenado pelo cartunista, de enfado e riso contido, diante das perguntas da jornalista Marília Gabriela. Esta, esbanjando entusiasmo e vigor gestual. Do protagonista, exala uma vontade de se constituir recatadamente moça – não pude evitar comparações com A praça é nossa.
Em geral, as tirinhas de Laerte apontam o absurdo no real. Imagem: Reprodução
Minha expressão risonha advém, justamente, do que o Laerte deseja anular: as diferenças, pelo respeito e aceitação da estranheza. Será que o riso revela meu preconceito diante do tema? É, pode ser, mas faço a opção de ver na atitude da tia Sônia – ou simplesmente Sônia, como ele prefere – um lance do humor levado às últimas consequências. É no tom grave do travestismo do Laerte, embora ele o faça com leveza, que vejo a manifestação do humor, até porque o humor se alimenta justamente de seu oposto: o sério. O lance daquele senhor de pernas ligeiramente tortas, cruzadas, com os joelhos à mostra, imbricou o que seria do campo profissional e artístico ao pessoal. Vejo o Laerte na crueza, no experimento de levar suas inquietações e argumentos das tiras para a própria vida. O humor em carne, osso e minissaia, parafraseando o título da entrevista do cartunista no iG.
DESCONCERTO
Mas, o que é humor? É claro que não vou responder. Simplesmente porque não sei. Pelo que andei pesquisando, ninguém sabe, quer dizer, não sabe enunciá-lo através de uma cientificidade, de modo que, ao obedecer-se à receita, tenha-se humor, como quem faz bolo, ali, quentinho na hora. Mas a humanidade, diante de tal dificuldade, foi descobrindo que manifestamos o senso de humor através de fiéis escudeiros linguísticos e enunciativos, como a ironia, que todos sabem definir, ou explicar.
A noção de ironia, para o analista do discurso francês Dominique Maingueneau, consiste em, além do contrário do que se quer fazer para que o destinatário compreenda, “uma fenda que o enunciador escava em sua própria enunciação, desconexão que se quer desconcertante entre discurso e realidade”. É nesse desconcerto que se configura o humor. Descobrir-se mulher até o ponto em que suas particularidades físicas masculinas tornem-se um último incômodo, seria trágico. Mas fazer-nos crer que estamos diante de um avatar que prega o discurso pós-moderno do apagamento de fronteiras, metamorfoseia-se em Sônia a fim de merecer entrevistas na Bravo, no iG e no GNT, dentre outras que virão, seria cômico, e, mais que irônico, sarcástico. Afinal, Laerte seria o feminino em sentido literal, como quer seu discurso, ou seria tudo figuração, curtição, uma experiência sensorial e social nas entranhas do humor?
Humor ácido de Henfil foi rechaçado pelo público norte-americano. Imagem: Reprodução
Contradizendo-me, vejo certa candura na atitude do Laerte, que faz um discurso pela paz e pela harmonia entre as pessoas. Não digo entre gêneros, pois é exatamente essa figura que ele quer apagar, não pelo ódio, mas pelo apagamento dos limites impostos. Dizia do sarcasmo, que vem do grego como “riso amargo”, que tem a ver com zombaria, com mordacidade, com o cáustico – com o que desdenha, morde, corrói. Mas quando Laerte corrói, não dói, faz refletir. Pode corroer certezas, como as geniais tiras que ele fez usando Deus como protagonista. Duvida?
Deus: Eu tentei, tentei e tentei... Mas não consigo fazer uma piada.
Explica Ele, visivelmente irritado. O grupo de santos, no céu, escuta atento.
Deus: Vocês sabem, é preciso uma certa dose de maldade...
Continua Deus, agora desapontado, e desabafa:
– Mas aqui só tem santo!
Diante da risadaria geral dos santos, Ele conclui, meio arretado:
– Não foi piada!
Essa tira de Laerte tem como justaposição surpreendente dois elementos discursivos incongruentes, que são os suportes para os efeitos de sentido e humor: a maldade e os santos. A igreja medieval viveu às turras com o risível, aliando-o à falta de decoro e reverência, o contrário do comportamento de Jesus, que jamais rira. Jacques Le Goff, pesquisador do medieval, diz que, no século 5, havia no proceder monástico regras que diziam ser o riso o jeito mais horrível e obsceno de se quebrar o silêncio. A Igreja não sabia o que fazer com um fenômeno que não podia controlar, como o riso, e por isso o considerava perigoso. Apenas no século 17, ela distingue o riso bom do ruim, os modos admissíveis de rir e os inadmissíveis. Retomando a tira de Laerte, ele põe os santos sob sentidos ambivalentes: o do ponto de vista de Deus, de que é impossível fazer piada onde só tem santo; e o ponto de vista dos santos. O mais óbvio é o de que ninguém é santo; numa segunda alternativa, estão rindo da impossibilidade do criador de todas as coisas realizar algo simples: fazer uma piada; numa terceira perspectiva, estão rindo da inocência de Deus, que poderia muito bem fazer uma piada: não faltaria matéria-prima. Os santos soltavam assim, um riso sarcástico, que remonta à tradição grega antiga, relativa aos baixos instintos para o que fosse do cômico. Chiques eram a tragédia e o épico.
Rê Bordosa, personagem criada por Angeli, trouxe graça ao tema da
liberação feminina. Imagem: Reprodução
NÃO PROFISSIONAL
Quero chamar a atenção, aqui, para o fato de que o humor é superdimensionado como “coisa” de profissionais, tanto que existem humoristas, chargistas, cronistas e palhaços em geral, todos remunerados. Mas o humor, atribuído por Aristóteles como próprio do homem, está presente no cotidiano, em todos os recintos, ocasiões e, claro, nas ruas. É tão comum, que nem se nota a presença dele. O humor faz parte das relações humanas, e nós somos irônicos, sarcásticos, grotescos, alegóricos, metafóricos: somos incongruentes, deliberadamente ou não. Dizemos coisas com duplo sentido, somente para divertir, em defesa pessoal, para atacar ou para magoar.
Era uma vez um Celta, dentro dele um pai trazia de volta as filhas da escola. Júlia, de 12 anos, disse: “Odeio ir à escola, odeio tarefas, odeio minha turma, só gosto de ficar em casa sem fazer nada”. O pai olhou de lado: “Que horror!”, censurou, carregando na indignação. Mas Alice, de 5 anos, não deixou por menos: “Calma, pai, ela só está sendo histórica”. Diante das risadas, ela retificou enfática: “Irônica, né?” Para mim, o nascido deixa de ser bebê para ser sujeito, quando descobre e pratica o humor.
Não, a Linguística, enquanto sistema, não dá conta sozinha dos modos configurados nos enunciados de humor. Sigo o pensador russo M. Bakhtin, para quem os enunciados são um todo compositivo em que seus elementos discursivos colaboram relativamente para os efeitos de sentido que quer suscitar. Uma piada razoável pode tornar-se mais engraçada num momento de tensão, ou se é dita por uma criança que parece não ter idade suficiente para compreendê-la. A língua tem sua importância, há sempre o que explorar e aprender dela, porém, não se pode falar de sentido sem considerar a situação de comunicação, o quadro cênico, o tema, o contexto amplo e o imediato.
Rango, personagem criado por Edgar Vasques, na década de 1970, representava o brasileiro miserável, esfomeado e marginalizado. Imagem: Reprodução
Os efeitos de sentido a serem fruídos dependem do grau de intimidade e da formação ideológica do coenunciador – leitor, audiência, plateia, com o tema em evidência. Alguém pode torcer o nariz para o fato de Laerte ter feito de Deus um de seus protagonistas. Os americanos não suportaram o humor dos fradinhos do Henfil – lá, The mad monks –, pois os acharam doentes e execráveis. Lembro uma tira em que o Baixim dizia algo assim para o Cumprido: “Se for mentira, que um raio caia em minha cabeça!”. Ka-bum! Cai um raio. O baixinho fica apenas chamuscado. No último quadro, aparece o braço de Deus agitando o punho cerrado. Lá de cima, vem um grito: “Pô, errei!”. Os americanos achavam tudo uma blasfêmia. Para nós, só alegria. Henfil havia fechado um contrato de 15 anos com o Universal Press Syndicate (UPS). Publicaram uns dois meses.
CONTEXTO
O tempo e lugar contam. Não adianta fazer mil análises linguísticas, estilísticas ou psicológicas das tiras do Rango, de Edgar Vasques, publicadas nos anos 1970. Segundo a editora LPM, Edgar se propôs a “criar um personagem que tivesse a cara do Brasil: miserável, esfomeado, marginalizado, pobre e desempregado, que vivia dentro de uma lata de lixo (...)”. A partir de 1973, Rango ocupou as páginas de vários periódicos brasileiros, como o Pasquim e a Folha da Manhã. Fazendo parte do boom de humor da década de 1970, simbolizou a resistência à ditadura militar”. Ler Rango era como levar um soco no estômago, a tira tinha milhares de fãs; porém, na década de 1980, o personagem perdera sua força. As mesmas tiras não socavam ninguém, a ditadura era uma página quase virada e o sucesso tinha outros heróis, como Bob Cuspe ou a Rê Bordosa, do Angeli. O contexto fazia com que o Edgar desenhasse o Rango em pé, e seu estômago emitia um ruído que incomodava muita gente: Ronc!. Mais de 10 anos depois, o engraçado era a Blitz, uma banda carioca liderada por Evandro Mesquita, que vendeu mais de 100 mil cópias de um compacto que tinha o hit Você não soube me amar. Estávamos saindo da zona de combate, da sisudez da denúncia; a nova guerrilha tinha como linguagem o escracho urbano. O humor catava outros simbolismos, como o registro da aparição do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira usando uma sunga de crochê em Copacabana, no Rio.
Ah, manifestamos o humor, também, através de paródias e alegorias. A paródia é comum em programas de humor na TV. Seleciona-se, por exemplo, uma música conhecida, e ela é cantada jocosamente com uma letra substituta, geralmente depreciando alguém ou algum valor. Torcedores também apreciam destronar o adversário parodiando o hino do clube. Ao abrir um show de Falcão, no Teatro do Parque, no Recife, a turma do jornal O Papa-Figo, através do psiquiatra e cartunista Bione, parodiou os pastores que pedem dinheiro através da TV. Para esse fim, o pseudopregador fazia gestos exagerados e falava de modo inflamado, apelativo e eloquente. É uma técnica que consiste em transferir performaticamente propriedades retóricas do gênero que se toma como fonte, para reproduzi-lo de modo caricato, através de um novo discurso. Já alegoricamente, pode-se expressar, com humor, algo de uma forma figurada. Os chargistas, por exemplo, usam um dragão para representar a inflação; e uma caveira sob um manto escuro empunhando uma foice é a alegoria da morte.
O campo do humor também acomoda o grotesco em seu guarda-chuva. É atual uma das acepções do Houaiss: “que ou o que se presta ao riso ou à repulsa por seu aspecto inverossímil, bizarro, estapafúrdio ou caricato”. Talvez seu apogeu tenha sido na Idade Média, mas as centenas de programas de auditório, com direito à transmissão pela TV via satélite, me põem em dúvida: os produtores colocam pessoas nas condições mais constrangedoras, fazendo de sua miséria física, intelectual ou relacional, uma forma aética de conseguir e manter a audiência. Quanto mais bizarro, melhor.
A aparição do Laerte, com a qual começo esse texto, foi vista por mim com um múltiplo olhar, e assumo todos eles: do filosófico ao jocoso; do acadêmico ao senso comum; do discursivo ao pantomímico; do profissional ao especulativo – sem excludência ou antagonismo, apenas um olhar dialógico. Concluo citando Graça Paulino, da UFMG: “Digamos que a imagem do leitor em interlocução humorística ou irônica é a de um antagonista provocado para reagir”. Assim o fui.
ANTONIO CLÉRISTON DE ANDRADE, chargista da Folha de Pernambuco e doutorando em Linguística pela UFPE.
Leia também:
O potencial criativo do humor
O humor nos tempos de cólera