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“Tarkóvski me levou a Floriênski”

Responsável pela primeira tradução do autor russo para o português, Neide Jallageas fala da influência do filósofo e teólogo sobre a obra cinematográfica do seu compatriota Andrei Tarkóvski

TEXTO Josias Teófilo

01 de Fevereiro de 2013

Neide Jallageas

Neide Jallageas

Foto Paulo Angerami/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Leitura" | ed. 146 | fevereiro 2013]

Neide Jallageas acaba de lançar
pela Editora 34 a primeira tradução para o português de uma obra do filósofo e teólogo russo Pável Floriênski, realizada em parceria com Anastassia Bytsenko. A tradução de A perspectiva inversa, diretamente do russo, aparece num momento em que o mercado editorial brasileiro recebe um grande número de publicações de autores russos, não só na literatura, mas também no cinema, especialmente do cineasta Andrei Tarkóvski. Floriênski foi um dos autores que mais influenciaram Tarkóvski. Sobre essa relação, a tese de doutorado de Neide Jallageas é referência, e trata da perspectiva inversa como procedimento na construção do cinema de Tarkóvski.

CONTINENTE De onde partiu a ideia de traduzir A perspectiva inversa?
NEIDE JALLAGEAS Da necessidade de checar se o que eu havia traduzido, cotejando do italiano, do espanhol e do inglês, correspondia ao texto russo. Utilizei o texto integral em minha tese de doutorado. Quando traduzia a partir dessas outras versões, notei algumas diferenças, como trechos inexistentes em uma e existentes em outras. Hoje, sei que a diferença pode ter surgido da escolha do texto original.

CONTINENTE A que se deveram essas diferenças na original?
NEIDE JALLAGEAS Se você tomar o texto editado pela Escola de Tartu-Moscou (Lotman e Cia), por exemplo, notará que há uma supressão. Cito isso na apresentação do livro. Essa foi a primeira edição publicada na Rússia (é de 1967, e o texto do Floriênski foi escrito em 1919...). Creio que haja diferenças em outras versões, até chegarmos na que pesquisadores mais recentes declaram ser a “final”. No que diz respeito a textos russos desse período, tudo estava “sob suspeita” e nunca temos certeza de qual é, de fato, o “final”. Com os textos de Eisenstein ocorre o mesmo.

CONTINENTE O que a levou a estudar Floriênski para entender Tarkóvski?
NEIDE JALLAGEAS Eu cheguei a Floriênski através de Tarkóvski e não o contrário. Ocorre que eu havia observado que alguns procedimentos utilizados pelo cineasta se aproximavam daqueles empregados por um pintor de ícones do período medieval. Explorei várias caminhos teóricos, vários autores, todos já conhecidos e bastante utilizados no campo do cinema. Posso dizer que foi a persistência que me levou a Floriênski, mas, na prática, dois eventos definiram meu percurso. O primeiro foi o lançamento das “caixas” com os DVDs de Tarkóvski, principalmente com documentários preciosíssimos sobre o seu cinema. O segundo foi a mostra que ocorreu na OCA: 500 Anos de Arte Russa. Foi magnífico deparar-me com o contrarrelevo de Tátlin, no qual o espaço é explorado de forma tão excêntrica, e que fui descobrir da mesma forma que os ícones exploravam... Foi também Kandinski, outro grande mestre russo da pintura que me conduziu aos ícones e, por vias indiretas, a Floriênski. O ícone, enfim, representa o cosmos. Maliévitch entendia isso com seu quadrado negro. O cinema de Tarkóvski também. E o mesmo Tarkóvski fez um filme sobre Rublióv, outro grande mestre, e daí, em seu livro Esculpir o tempo, Tarkóvski cita Floriênski. Quis saber o que havia movido os maiores artistas do século 20 e que estava ancorado na arte medieval. Fui atrás.

CONTINENTE Tarkóvski usa a perspectiva inversa como procedimento no cinema?
NEIDE JALLAGEAS Pode-se dizer que sim, essa é a conclusão de minha tese, embora não só. Apenas a utilização da perspectiva inversa como procedimento no seu cinema seria impossível, pois a própria câmera é um objeto concebido, codificado e pronto para gerar imagens segundo a perspectiva linear. O mais incrível é a violação da perspectiva linear, o que ela representa. E como ele associa as perspectivas. E aí é que Tarkóvski, um russo, sagaz, sensibilíssimo e conhecedor extremo das tradições de seu país, e ainda da cultura universal, consegue atravessar para o outro lado. E, note-se, Tarkóvski pertence a uma geração que poderia ser considerada aquela do Homus soviéticus no sentido mais estrito do termo: nasceu em 1932, ano da implantação do realismo socialista e viveu sua infância, adolescência e juventude sob a cartilha de Stalin. Melhor exemplo de violação de um sistema não pode haver! 

JOSIAS TEÓFILO, jornalista e mestrando em Filosofia pela UnB.

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