CONTINENTE Qual o lugar da literatura indígena no Brasil?
DANIEL MUNDURUKU A Literatura Indígena (Lind) é um fato novo, hoje, no Brasil. Ela foi chegando aos poucos para ocupar um espaço vazio ou que era timidamente ocupado pela literatura indigenista, mas que não tinha a mesma originalidade, por ser uma repetidora de estereótipos, prestando um desserviço para a educação brasileira. A Lind faz parte de uma ação dos próprios indígenas no sentido de oferecer ao cidadão brasileiro uma nova forma de relação com nossos povos. Por si só, e sem o desejo de ser de todo pedagógica, ela educa o olhar da população para as riquezas indígenas que foram sendo deixadas para trás no processo civilizatório brasileiro. Creio que esse seja seu lugar.
CONTINENTE É preciso chamar essa escrita de indígena, tratá-la como uma escrita de minorias?
DANIEL MUNDURUKU Já me perguntei diversas vezes sobre isso. Nunca cheguei a uma resposta definitiva, mas creio que seja necessário, sim, considerar essa literatura como a escrita de uma minoria. É preciso lembrar ao Brasil que os povos indígenas foram deixados ocultos em boa parte do processo colonialista. Foram, e ainda são, povos que sobreviveram por teimosia, por coragem e por puro instinto de sobrevivência. Não há motivo, agora, para homogeneizar isso, tirando esse recorte étnico da literatura produzida por indígenas. Pensar que, há alguns anos, era defendido o fato de que os nossos povos não chegariam ao século 21, e que, hoje, estamos dominando as técnicas e tecnologias do mesmo mundo que não nos queria é algo formidável! É preciso que seja dito a todos.
CONTINENTE De onde surgiu a percepção de que estava na hora de registrar e contar para os não índios as histórias seculares dos povos indígenas?
DANIEL MUNDURUKU Não creio que haja qualquer possibilidade de marcar isso no tempo. Creio que as oportunidades foram aparecendo – como um sopro ancestral – e as pessoas foram sentindo que a hora era aquela. E penso que não se trata apenas da literatura escrita (há alguma contradição?), mas esse sopro chamava as pessoas de todas as áreas de conhecimento. Foi dessa maneira que muitos jovens ingressaram nas universidades; alguns fizeram cursos de cinema e vídeo e outros ingressaram no mundo da música; outros ainda passaram a perceber que a cultura a que pertenciam era seu patrimônio mais rico e passaram a resgatá-la através do teatro. Há um fio muito tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar esse fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não se atualiza. É preciso notar que ela, a memória, está buscando dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas, mas há também o vídeo, o museu, os festivais, as apresentações culturais, a internet com suas variantes, o rádio e a TV. Ninguém duvida que cada uma delas é importante, mas poucos são capazes de perceber que é também uma forma contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental para os dias atuais. Enfim, foi um mesmo movimento e cada pessoa que estava “conectada” ao sopro ancestral pôde entrar na onda e desenvolver seu próprio talento. Acho isso muito mágico!
CONTINENTE Ainda existem muitas histórias a serem contadas? E as que fazem parte do sagrado de vocês permanecerão guardadas?
DANIEL MUNDURUKU O repertório das histórias é inesgotável. Se cada indígena escrever apenas sobre seu povo, irá produzir um gradiente de livros sem fim. Irá contar suas memórias, suas aventuras, os amores que acontecem na mata, as epopeias dos heróis criadores, as histórias dos encantados, o mundo dos espíritos; poderá criar mil ficções com as histórias que ouviu, viu ou viveu; poderá contar a história de sua gente, sua resistência, suas lutas de sobrevivência. Vai poder falar sobre os conhecimentos da natureza, as relações sociais, as divergências internas, enfim, assunto não irá faltar. As histórias que são consideradas sagradas já estão sendo reveladas, faz tempo. O problema é que a mentalidade ocidental não consegue captar. O tempo todo ela está sendo falada, contada e cantada, mas há uma cegueira proposital entre as pessoas muito racionais. Muitas já estão usufruindo esse saber espiritual. Estão abertas para esse conhecimento partilhado.
CONTINENTE Qual a diferença entre a escrita indígena e a que está posta na sociedade vigente?
DANIEL MUNDURUKU São fios tênues, creio eu. A escrita indígena tem um caráter holístico. Um autor indígena não fala apenas de si, ele conta a história de muitos, de todos. Ele tem compromisso com sua comunidade, seu povo. Por isso, busca sempre falar para além de si mesmo. Ele/ela sabe que seu dom de escrever, contar, cantar, dançar, pintar não é um fim em si mesmo. Sabe que é um dom coletivo, que deve estar a serviço do todo a que pertence. Talvez por isso eu não sinta que haja qualquer tipo de concorrência entre os escritores indígenas. Parece que há um acordo silencioso entre nós, no qual a alegria pelo sucesso do outro é um bálsamo para todos. A escrita ocidental é, basicamente, um exercício de si mesmo. Cada pessoa se sente sua própria empresa, e seu talento é seu ganha-pão. Não há comprometimento com a realidade ou com a vida. O autor ocidental é um solitário, alguém que busca sempre suplantar alguém. Costuma não gostar de crítica e finge não gostar de bajulação, quando, na verdade, vive, deseja, busca ser bajulado pela “grande” obra que produziu. Acho isso um perigo!
CONTINENTE Existem dezenas de livros, feitos por indígenas, sendo publicados hoje no país, uns impressos e outros nos meios virtuais, por falta de recursos. Na sua avaliação, por que você conseguiu esse destaque, a ponto de conquistar o apoio de grandes editoras?
DANIEL MUNDURUKU Na verdade, acho que não fui exatamente eu que consegui essa proeza. Tenho livros em algumas editoras grandes (Ática, FTD, Moderna, Companhia das Letras), mas os livros que me dão melhores retornos são os publicados por pequenas e médias editoras (Global, Brinque Book, Callis). Há outros autores que também são publicados por grandes casas editoriais, até mais que eu. O que ocorre é que algumas editoras sabem trabalhar com nossos livros, outras não. A nossa relação com essas instituições é muito variada e sei de livros que encalham por pura falta de competência delas, pois não perceberam que a literatura indígena precisa ser trabalhada de forma diferenciada. Não se pode oferecer a Lind como um mesmo produto. É preciso que os divulgadores conheçam minimamente o que estão vendendo, para poder ter sucesso. E também não basta que o livro seja de um indígena, para que tenha qualidade literária. Tem editora que pensa assim e isso é um erro grosseiro.
CONTINENTE Como você avalia a aceitação da sua obra?
DANIEL MUNDURUKU Não saberia responder de uma forma estatística a essa pergunta. O que sei é o que vejo acontecendo há 15 anos, quando lancei meu primeiro livro pela Companhia das Letrinhas: as escolas estão lendo meus livros e os governos os estão comprando. Por si só, já são termômetros dessa aceitação. Será que compram porque sou um autor indígena ou por que o que escrevo repercute na vida e no coração de quem me lê? Não saberia dizê-lo. O que posso afirmar é que meu trabalho tem sido reconhecido no Brasil por importantes instituições, como a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e a Academia Brasileira de Letras (ABL). Da mesma forma, já recebi um prêmio Jabuti – CBL e ganhei um premio do CNPq pelo conjunto da obra. Acho que isso é a prova de que meu trabalho é reconhecido e tem alcançado seu objetivo principal: mostrar que os povos indígenas estão vivos e presentes no cenário brasileiro.
CONTINENTE Existe alguma vontade político-social nessa escrita, de diálogo com a sociedade não indígena, aceitação ou algo do gênero?
DANIEL MUNDURUKU Minha intenção é clara: sou um indígena brasileiro. Quero afirmar isso o tempo todo aos que me leem. Quero dizer que não sou índio, não sou um adjetivo na memória do Brasil. Quero dizer que não sou uma imagem e menos ainda uma definição negativa, estereotipada ou um incapaz. Quero dizer que meu povo é Brasil. Que minha gente é guerreira. Que meu sangue é de paz. Quero mostrar que sou digno de ser brasileiro e que não tenho vergonha de pertencer a um povo marginalizado. Quero que o Brasil entenda que meu povo não é vítima da história... É a própria história que se constrói, dia após dia, num país que fechou os olhos para nossa sabedoria e, consequentemente, para sua própria ancestralidade. Se isso tudo não for uma vontade político-social ou uma tentativa inglória de diálogo, eu não sei mais o que ela pode ser.
ISABELLE CÂMARA, jornalista, diretora de Comunicação no Tribunal Regional Federal.