Arquivo

“O livro só cresce com a análise profunda”

Tradutor de 'Graça infinita', o doutor em Linguística pela USP Caetano Galindo fala sobre a adaptação da obra de David Foster Wallace para a língua portuguesa

TEXTO André Araújo

01 de Novembro de 2014

Caetano Galindo

Caetano Galindo

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Leitura" | ed. 167 | nov 2014]

Tradutor de Graça infinita, Caetano Galindo é professor
de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de Tom Stoppard, James Joyce e Thomas Pynchon. Ele manteve um blog sobre a tradução do romance de David Foster Wallace no site da editora Companhia das Letras e, nesta entrevista, expõe algumas questões sobre o livro e a tradução.

CONTINENTE Qual é a sua relação com a obra de David Foster Wallace e quais foram as motivações para se engajar na tradução de Graça infinita?
CAETANO GALINDO A minha relação com a sua obra é diferente. Até porque ela existe, existia e era forte antes de eu começar a traduzir. Fui atrás de Graça infinita logo depois de ter terminado a tradução do Ulysses, basicamente para tentar um “banho de descarrego”, e ver o que de mais interessante as pessoas andavam fazendo por aí, no mundo pós-Joyce. Viciei. Dali em diante, li tudo que ele publicou, e boa parte do que ele não publicou. E, nesse tempo todo, como uma espécie de vício profissional, que só se via intensificado pela singularidade da prosa do Wallace, eu ia pensando como seria bom traduzir aquilo, como eu gostaria de tentar... E ia, claro, ensaiando soluções. Ele tem um estilo tremendamente contagiante, e me vi durante vários anos escrevendo “à la Wallace”, para ver como era. Ou seja, quando veio o convite da Companhia das Letras para traduzir o Graça infinita, eu já estava “aquecido”, por assim dizer.

CONTINENTE A ambientação dos espaços em Graça infinita é construída com um uso cuidadoso de léxicos específicos, com utilização de gírias, maneirismos, estrangeirismos, além de um processo de invenção de um vocabulário específico para o mundo político no qual a história se passa. De que forma ocorreu a reconstrução desse “mundo” a partir de sua tradução?
CAETANO GALINDO Bom, por partes. Nos campos do tênis e das drogas, teve alguma pesquisa (santo Google, santa Wikipédia... não dá mais para imaginar como era traduzir offline), alguma colaboração de gente que entende das respectivas áreas, especialmente o Paulo Henriques Britto e o Reinaldo Moraes. As gírias, bem como as marcas de oralidade em geral, são um campo com que gosto de trabalhar. Eu me realizo mesmo é traduzindo diálogo, e boa parte da prosa narrativa do Wallace tem um inequívoco tom de oralidade como base. Então, é festa. É a possibilidade de incluir tudo em que você presta atenção, tudo que lhe chama a atenção no português de hoje, e que nem sempre dá para encaixar nas traduções. No Wallace, cabe tudo. Ele pede tudo. Você mencionou, por exemplo, estrangeirismos. E tem uma coisa muito esquisita no Graça infinita, que é o fato de Quebec ter um papel importante no livro (como sede de um movimento terrorista), e a francofonia acaba aparecendo em diversas falas, nomes de organizações etc., mas, quase invariavelmente, o francês que aparece, aparece errado... Às vezes, bem errado. Wallace era, em diversos sentidos, um americano “caipira”, que praticamente não saiu dos EUA. Posso achar que ele estava simplesmente errado, e corrigir. Mas num livro que, no fundo, é tão absolutamente estruturado, apesar de uma aparência de caos, não seria isso também motivado? Depois de uma longa conversa com o tradutor alemão e de alguma troca de ideias com os tradutores portugueses, optei por deixar como estava. Na impossibilidade, ainda mais triste, de consultar o autor...

CONTINENTE Que cara tem o Graça infinita de Caetano Galindo em relação ao Infinite jest de David Foster Wallace, e quais as mudanças de contexto que você vê entre o momento do lançamento e hoje em dia?
CAETANO GALINDO O livro, como todo livro bom (excelente, na verdade), só cresce com a análise profunda. Quando mais você fuça, mais você entende, mais você vê, mais você admira e mais você se encanta. O livro, para mim, saiu ainda mais forte, ainda mais impressionante. A tradução foi a minha terceira (e quarta, e quinta...) leitura. E hoje eu vejo ainda mais qualidades no livro. Fiz o que pude, claro, para que essas possibilidades e esses encantos todos não morressem na tradução. Insisto sempre com os alunos que o papel do tradutor não é o de estabelecer uma leitura, mas o de diagnosticar possibilidades de leitura e manter essas portas abertas para quem for ler a versão traduzida. Assim, posso ter gastado muito tempo com detalhes que ninguém vai perceber (especialmente pequenas correspondências internas), mas que, se alguém um dia vir, vai justificar esse “exagero”. Eu não tenho (ninguém tem... mesmo) a exuberância verbal do Wallace. Mas o próprio fato de que eu vinha lendo a obra dele há muitos anos me acostumou a tentar, a não ter preguiça nem vergonha de tentar, de ir mais fundo e mais alto. Claro que tenho um certo receio... Só de pensar que muita gente vai conhecer apenas o “meu” Graça infinita, e de pensar o quanto eu respeito, amo mesmo esse livro... é uma responsabilidade enorme. Mas até por isso é um privilégio, também. Falar pelo Wallace. Agora, o que eventualmente mudou (apesar de não “datar” ou “superar” as discussões no livro) foi a questão do discurso irônico. Aquele diagnóstico que ele faz, magistralmente, no ensaio sobre televisão, e que tem um papel bem central no livro, eu penso que continua muito certeiro e poderoso: a ideia de que toda uma geração, especialmente a partir dos anos 1980, transformou todo tipo de ironia em um credo e uma muleta que impediam que coisas realmente importantes fossem ditas e, eventualmente, fossem até sentidas. Mas o que o Wallace não poderia ter imaginado era a reviravolta dos anos 2010. O fato de que agora é justamente a “sinceridade”, a “candura”, as “boas intenções” que aparecem instrumentalizadas como ferramenta publicitária, retórica, política... a ideia de que o cinismo não foi vencido pela linguagem reta, mas encampou essa mesma linguagem. Ele teria ficado chocadíssimo. 

ANDRÉ ARAÚJO, jornalista e mestrando em Comunicação e Literatura na UFRGS.

Publicidade

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”