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Riqueza: Dos primórdios até hoje

A tendência à ostentação revela-se como um traço do comportamento humano bastante anterior à sociedade capitalista

TEXTO Carolina Leão

01 de Dezembro de 2013

A tela 'The Finding of moses', de Lawrence Alma-Tadema, evidencia a distinção social entre nobres e vassalos

A tela 'The Finding of moses', de Lawrence Alma-Tadema, evidencia a distinção social entre nobres e vassalos

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 156 | dezembro 2013]

Para Lipovestky, o luxo é um fenômeno cultural,
intrínseco ao desenvolvimento da civilização. Em todas as épocas, sob todas as formas, ele existiu. Se você acha que o consumismo foi o criador do fenômeno Rei do Camarote, índice de ostentação e esnobismo, leia o Luxo eterno – da idade do sagrado ao tempo das marcas. No livro, ele explica que o luxo não nasceu de um excedente de riqueza e progresso tecnológico, comumente associado à Era Moderna, mas do espírito de dispêndio – encontrado nas mais primitivas sociedades.

Esse espírito manifesta-se muito antes de uma lógica econômica estratificada em classes, como acontece, por exemplo, com as distinções sociais promovidas pela aristocracia e burguesia, a fim de se estabelecer politicamente. Uma das condições primeiras do surgimento do luxo, a medida de uma riqueza social, foi o pensamento mítico, mágico, que antecedeu às religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo). Honrarias divinas costumavam incluir sacrifícios humanos, banquetes festivos, ofertas de joias raras e vestimentas preciosas fabricadas com a matéria-prima presente em cada região. O luxo sagrado, selvagem. Elo entre o humano e o sobrenatural, amuleto faústico em nome da gratidão e proteção espiritual.

Santuários monumentais foram erguidos em diversos momentos da história à base de exaustivo trabalho humano, em agradecimentos aos deuses. No Egito Antigo, escravos judeus ajudaram a erguer uma arquitetura complexa e suntuosa, repleta de ouro e pedras preciosas com as quais os faraós, representantes dos deuses na terra, garantiram sua última morada. Fausto em nome da superioridade de classe, definindo, assim, a hierarquia social, que determinava quem ficaria para a história.

“Os bens de luxo estiveram na origem não apenas dos objetos de prestígio, mas também das maneiras de estabelecer um contato com os espíritos e os deuses, dos talismãs, dos seres espirituais, das oferendas e dos objetos de culto supostamente benéfico tanto aos vivos como aos mortos”, comenta Lipovestky.

Culto religioso politeísta, o candomblé, por exemplo, tem sua própria divindade da fartura e vaidade: Oxum. Ela agrega diversos elementos simbólicos da natureza humana (fertilidade, abundância, beleza) encontrados em outras mitologias nacionais sob a persona de outras divindades. No misticismo afro-brasileiro, sua simbologia deu origem a um dos orixás mais populares. Também pudera. A riqueza é um desses símbolos que rege a deidade. Por isso, Oxum tem como metal afetivo o ouro e um espelho adornado acompanhando sua dança sensual.

“O arquétipo de Oxum é o das mulheres graciosas e elegantes, com paixão pelas joias, perfumes e vestimentas caras. Das mulheres que são símbolos do charme e da beleza. Voluptuosas e sensuais, porém mais reservadas que Oiá. Elas evitam chocar a opinião pública, à qual dão grande importância. Sob sua aparência graciosa e sedutora, esconde uma vontade muito forte e um grande desejo de ascensão social”, diz o fotógrafo e pesquisador das religiões afro-brasileiras Pierre Verger.


O filho de Oxum, Paulo Abdo, destaca os atributos de riqueza e
bens de prestígio associados à divindade. Foto: Helder Tavares

Filho de Oxum, o professor de educação física Paulo Abdo herdou o candomblé da mãe, há 32 anos, e conta que desde sempre foi coquete. “Minha mãe falava que eu, além de querer só coisas boas e caras, era bastante vaidoso e gostava muito de usar perfumes. Eu sempre pedia para ela comprar uma pulseira de ouro para mim”, lembra. “Quem domina, protege e me rege em meu ori (cabeça) é Oxum. Vejo muito brilho na minha vida. Todos quando me vêm dizem logo: és a cara da riqueza e do brilho”, completa.

OSTENTAÇÃO
Mais recentemente, o etnólogo Malinowski citou as grandes expedições dos kula, na Melanésia, como exemplo de opulência e dispêndio. Tribos localizadas na região da Papua-Nova Guiné se expunham ao perigo, caçando ostras para colares que seriam ofertados a habitantes de ilhas distantes. O objetivo era claro: neutralizar o inimigo através da dádiva. “A estima social e as posições prestigiosas são ganhas à força de presentes oferecidos frequentemente numa rivalidade exasperada”, comenta Lipovestky, sobre a prática.

A cerimônia Potlatch, realizada entre os índios do Canadá e dos Estados Unidos, consistia num festejo que incluía, além de um farto banquete de carnes, como a de foca, a renúncia de todos os seus bens materiais. A tribo dos Potlatch obtinha seus títulos e honrarias desafiando seus rivais com a destruição de seus tesouros, jogados ao mar. Para Marcel Mauss, era uma sabedoria amparada por uma racionalidade simples: matar a propriedade para ganhar paz, distribuir na festa para não ser massacrado.

“Distribuir tudo com excesso, das festas e presentes exagerados, e oferecer hospitalidade generosamente é transformar o estrangeiro em amigo, substituir a hostilidade pela aliança, os recursos das armas pela reciprocidade”, conceitua o filósofo. Vista como “perdulária”, a cerimônia Potlach foi proibida pelos governos americano e canadense, no final do século 19.

Essa “generosidade”, de forma mais utilitarista, vamos encontrar no conceito de Noblesse oblige, da Idade Média ao pós-moderno. Banquetes, festas patrocinadas, presentes suntuosos, tudo isso realça o prestígio das altas classes. A nobreza manda e sua etiqueta pede, também, que ela patrocine, ostente. Hoje, os emergentes, novos ricos, celebridades, jovens milionários, fazem como podem: desperdiçam garrafas de champanhe ou caviar num tour de force de exaustão narcísica.


A Cerimônia Potlatch, prática entre índios canadenses e norte-americanos, consistia em destruir dádivas para mostrar poder. Foto: Divulgação

Qual seu valor simbólico? A simbologia numa nova fase dessa prática relaciona-se tanto com o culto ao espetáculo cotidiano e ao narcisismo contemporâneo quanto à necessidade de se mostrar ativamente como soberano em seu novo status.

Para a socióloga Maria Eduarda Rocha, tomando o sociólogo francês Pierre Bourdieu como referência, o luxo verdadeiro não combina com a ostentação. “O que, na França, permitia distinguir um membro da elite era uma certa segurança de si, um desinteresse na demonstração de seu lugar social que é a mais clara marca deste lugar social, porque lança os ‘novos ricos’ em uma situação cruel, na qual quanto mais se esforçam para ostentar sua ascensão social mais explicitam sua origem inferior, pela ansiedade com que tentam emitir os sinais de riqueza”, defende.

O velejador Samuel Brito lembra que, hoje, a moda dos milionários americanos é a filantropia. Verdadeiros campeonatos de doações são patrocinados como ostentações, que funcionam tal qual provas de prestígio social. “Já vi festas na Europa em que milionários derramavam garrafas de champanhe de 15 mil reais. Nos Estados Unidos, eles competem com quem gasta mais, doando”, comenta.

Para o executivo Cláudio Diniz, o Brasil não pode ser comparado a nenhum dessas culturas, mas aos países dos BRICs. “A nossa cultura do luxo é recente e nós somos uma sociedade emergente. A Europa passou por duas guerras. Lá, ostentar é cafona. O chique é não usar logo e as pessoas que entendem reconhecem a simplicidade com a elegância. Já o Brasil vive uma febre do consumo. Não chega a ser como a Rússia e a China, onde tudo que tem logo e luxo eles compram, porque vieram de uma economia reprimida (a comunista)”.

Ele diz que, a cada 30 minutos, uma pessoa fica milionária no Brasil. São profissionais que vêm da pecuária, dos esportes e do mundo das celebridades. Tiveram uma vida de penúria e o que eles querem mais é ostentar. “Precisam ostentar para ser referência. Mas o fato apenas de comprar não é ostentação. Ela só existe quando se compra para se impor perante outras pessoas. O fato de as pessoas terem dinheiro e poderem comprar um vestido de casamento não é por si só ostentação”. 

CAROLINA LEÃO, jornalista e doutora em Sociologia pela UFPE.

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