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“Faço filme para o Brasil e estou contente com isso”

Tendo seu filme 'Cabra marcado para morrer' relançado em digital, o cineasta Eduardo Coutinho comenta sua linha de atuação na produção de seus documentários

TEXTO Luiz Fernando Moura

01 de Maio de 2012

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Claquete" | ed. 137 | maio 2012]

Perto dos 80 anos,
o cineasta que, involuntariamente, criou um “modelo” de documentário no Brasil mantém a ênfase no projeto de um cinema de riscos, o fascínio enviesado pelas narrativas televisivas e expõe o interesse por filmes inacabados. Mas se resguarda numa zona de conforto: reafirma que forma é conteúdo, diz que está velho e cansado e hesita sobre se ainda há algo a produzir.

CONTINENTE Seus filmes sugerem um jogo entre atuação, encenação, verdade. Ao mesmo tempo, você tem um trabalho, nos primórdios, com ficção. Por mais que tenha se estabelecido como documentarista, a ficção está lá. De que forma esses filmes têm impacto sobre sua obra atual?
EDUARDO COUTINHO Foi uma escola importante. Mas se eu não tivesse Cabra marcado para morrer no armário, talvez não voltasse nunca a fazer cinema. Não rejeito esses filmes de ficção, mas eu era outra pessoa. Quando fui fazer Cabra..., sabia o que queria. Quando eu fazia ficção, hesitava.

CONTINENTE Entre seus momentos como roteirista e diretor de ficção, mais perto do Cinema Novo, e como documentarista, pontuado por Cabra marcado para morrer, ocorreu uma ruptura?
EDUARDO COUTINHO Fiz esses filmes para ganhar a vida. Têm pouco a ver com o que eu descobri depois de Cabra... Na ficção, tentei aprender a dirigir atores, e com Cabra..., e tudo o que fui fazer depois, aprendi a não dirigir atores, entende? Praticamente, sou parceiro do cara que está falando, e por isso consigo coisas que outros não conseguem. Me entrego a escutar e ter um diálogo com o outro. E aí você tem que ficar vazio de intenção, de estética, de tudo. É claro que acaba tendo, no documentário que eu faço, um germe de ficção violento. Como o Godard dizia, todo grande documentário tende à ficção e toda grande ficção tende ao documentário.

CONTINENTE E quanto aos documentários que você fez para o Globo Repórter? Theodorico, o imperador do Sertão, se lançado como filme, hoje seria impactante.
EDUARDO COUTINHO O problema é que o filme não é meu. O filme é da Globo. Precisaria pedir autorização. Eu adoraria porque é o único filme que fiz com um membro da classe dominante, um senhor de escravos. Mas tem problemas com a qualidade do som, porque é muito antigo, feito em reversível.

CONTINENTE Você já tentou chegar nesse universo social outras vezes?
EDUARDO COUTINHO Acho que deve ser feito e que o documentário brasileiro não enfrenta a classe dominante, a política brasileira, mas não tenho o menor interesse nisso. Não me interessa nenhuma pessoa pública. Seja Ivo Pitanguy, seja Lula, quem for. Porque figura pública não se entrega, tem muito a perder.

CONTINENTE Você sempre defende uma diferença essencial de forma entre documentário e o telejornalismo. Um dia na vida reforça uma tensão entre os seus filmes e o que se vê na televisão brasileira. Você assiste à televisão, traz coisas dela para o seu trabalho?
EDUARDO COUTINHO Você vê que não tem um plano de seis segundos em silêncio. Como eu acho que forma é conteúdo, digo que o problema da televisão é de forma. Eu ouço televisão, porque em geral não precisa olhar. Não tem a menor importância o que está na imagem. Tem um programa em que uma mulher vende anel. É um programa que vende esse produto, e tem uma mão que aparece com 200 anéis, é maravilhoso. É um horror, e é fascinante.

CONTINENTE Fala-se muito que os primeiros filmes de cineastas já apresentam o que vai se ver ao longo da sua obra, assim como em Cabra... diversas questões que permeiam seu cinema já estão presentes.
EDUARDO COUTINHO Tem coisas que fiz depois – nelas, a origem está um pouco em Cabra..., só que radicalizei no uso da palavra. As pessoas que falam, falam diante da câmera, para mim é uma regra. Em Cabra... tem alguma coisa disso, porque aparece a equipe, eu apareço. Como posso tirar minha voz, se estou filmando diálogos? O que estou filmando é uma interação entre duas pessoas, uma de um lado da câmera, outra, de outro. Isso tem um conteúdo erótico, no sentido mais amplo da palavra. A palavra me interessa porque o corpo fala. Se o corpo fala, a presença dele é essencial. Cinema é imagem e som, pelo amor de Deus. Resolvi fazer filmes que fossem baseados na força da palavra, por isso meus filmes não vendem lá fora. Faço filme para o Brasil e estou contente com isso.

CONTINENTE Parece-me que o Coutinho de Edifício Master tinha estabelecido uma linguagem, então vem Jogo de cena, que cria essa brincadeira com o espectador, até que, antes de As canções, veio Moscou, que para muita gente pareceu um filme de ruptura.
EDUARDO COUTINHO Foi um risco. Tudo era absurdo. Paguei para ver o que dava, com uma companhia que eu não conhecia, três semanas de filmagem, um sofrimento. Ninguém entende o texto, por isso o filme foi muito mal, não teve nem oito mil espectadores. Eu gosto dele, mas me embananei, fiquei com um copião de quase cinco horas. Foi complicado, mas acho que tem um mistério nele. Não é confortável para as pessoas porque o que é esse filme? É uma peça, o que é? É um filme que, para mim, é inacabado. Adoro coisa inacabada. Aliás, o ideal é morrer com um filme na metade, que ninguém deixe pronto.

CONTINENTE Seus projetos futuros. Tem algum engatilhado?
EDUARDO COUTINHO João Moreira Salles quer que eu faça um filme, mas tem que me chicotear, porque tenho a impressão de que não aguento mais filmar o que não quero. Não sei se vou ter condição física e moral de fazer, porque estou cansado, estou velho. 

LUIZ FERNANDO MOURA, jornalista.

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