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Relato vital sobre uma pessoa

As biografias se situam entre história, jornalismo e literatura. O narrador reconstrói episódios a partir de documentos, cartas, livros e depoimentos

TEXTO Eduardo Cesar Maia

01 de Novembro de 2013

Embora o gênero só tenha se definido no século 17, a narrativa dos deuses tem caráter biográfico

Embora o gênero só tenha se definido no século 17, a narrativa dos deuses tem caráter biográfico

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 155 | novembro 2013]

Muito tem-se falado a respeito
de direitos e deveres do biógrafo. Nas últimas semanas, jornais, revistas, programas de televisão e mesmo as pessoas comuns, nas mídias sociais, têm apresentado a questão sob as mais distintas perspectivas, com maior ou menor coerência e pertinência em cada caso. A “Batalha das Biografias” brasileira, portanto, teve como ponto bastante positivo o fato de ter gerado um intenso debate público sobre temas como direito à privacidade, liberdade de expressão e censura; coisas que, numa democracia liberal, nunca devem cessar de ser problematizadas. Não se trata de apresentar um juízo de valor em relação ao que têm dito personalidades como Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso e outras figuras de nossa música popular. O leitor encontrará aqui simplesmente algumas informações e breves reflexões sobre o gênero biográfico e seu desenvolvimento.

A palavra “biografia” (do grego bio, “vida” e grafos, “escrever”) – se observarmos a variação em seu uso durante a história – não permite uma compreensão unívoca e definitiva. O termo foi estabelecido somente no século 17 e foi utilizado, retrospectivamente, para se referir a um gênero autônomo desenvolvido desde a Antiguidade, conhecido então como vita (vida). Primordialmente, desde as Vidas paralelas, de Plutarco, ou dos textos de Cornelio Nepote, o gênero se baseava num desígnio moralizante, edificante e didático, ainda que existam importantes exceções, como a notável Vida dos doze césares, de Suetônio.


No período medieval, era frrequentes as hagiografias, ou biografias
de santos, como Francisco e Joana D’Arc. Imagem: Reprodução

Esse propósito ético e pedagógico prosseguiu durante a época medieval, com as hagiografias (biografias de santos), que teve como figura principal Giacomo da Varazze, autor de Legenda áurea, uma espécie de crônica das vidas santas. Os trovadores provençais também cultivaram, à sua maneira, os relatos de caráter biográfico, tanto religiosos como referentes à nobreza e famílias importantes.

O antropocentrismo renascentista, posteriormente, levou o gênero a uma importante reformulação. O estudo da vida e do pensamento de pessoas ilustres se opôs ao modelo teocêntrico das vidas dos santos, colocando em primeiro plano personagens de destaque na vida civil, militar e artística. A revisão da herança clássica restaurou a fé central no homem, no indivíduo. A fama, o prestígio, as conquistas, o dinheiro, as façanhas, o poder e o gozo material e sensual da vida passaram a ser admirados, e não mais desprezados. Plutarco volta a ser o modelo imitado por todos; e o padrão moral já não pode ser somente o da rigidez cristã.


Joana D'Arc. Imagem: Reprodução

Já durante o Romantismo, o aprofundamento da vida psicológica dos personagens ganha relevo, juntamente com a preocupação, por parte dos biógrafos, em tornar a leitura da obra mais amena e estimulante, muitas vezes em detrimento da verdade factual. As metodologias positivistas, no século 19, também contribuíram com o desenvolvimento do gênero, principalmente no que diz respeito ao rigor documental e ao detalhamento minucioso do contexto histórico e cultural.

RELEVÂNCIA PÚBLICA
Como se vê, ao longo do tempo, escritores e pensadores de diferentes origens estabeleceram variadas expressões para descrever os diversos procedimentos, estilos e modelos do gênero biográfico. Talvez por isso contemos hoje com uma série de expressões e palavras, muitas vezes redundantes ou polissêmicas, para nos referirmos a esse tipo de narrativa – o que pode gerar ambiguidades.


Biografias estão entre os títulos de maior vendagem no Brasil.
Imagem: Reprodução

Escutamos com frequência os termos biografia, autobiografia, história pessoal, narração biográfica, perfil biográfico, relato biográfico, biografia intelectual... Ao invés de nos atermos aos rigores das diferenciações, às particularidades e definições a respeito de cada uma dessas formas de abordagem, podemos nos propor algo mais simples: mostrar o que existe de comum entre elas.

Em qualquer acepção que propusermos para um relato de tipo biográfico encontraremos, na prática, um tipo de trabalho orientado a narrar total ou parcialmente a trajetória vital de uma pessoa que desperte algum interesse social, comumente personagens históricos e de relevância pública, que tenham contribuído nos âmbitos da política, da ciência ou da arte.


Imagem: Reprodução

Nos últimos tempos, no entanto, a ideia de relevância pública, como se sabe, transformou-se bastante. Com o advento da chamada “sociedade de massas” e com a estonteante explosão do consumo cultural e midiático, foi se estabelecendo uma nova hierarquia de mitos culturais surgidos fundamentalmente dos campos da música popular, do cinema e do esporte. As biografias – e não poderia ser diferente – seguiram o caminho das novas demandas, e passaram também a atuar em serviço da publicidade, muitas vezes através de abordagens polemistas desses mesmos novos mitos.

Em sua forma mais tradicional e reconhecível, portanto, a biografia nos apresenta um personagem famoso, e tenta explicar suas escolhas, ideias e atos em conformidade com suas circunstâncias particulares, com sua época e com o arranjo político, cultural e social no qual estava inserido, traçando uma espécie de pintura de sua personalidade e pensamento.


Imagem: Reprodução

Assim, podemos partir, com alguma segurança, da ideia de que as biografias constituem um gênero situado entre a história, o jornalismo e a literatura (o predomínio ou o equilíbrio entre essas três disciplinas numa biografia vai depender da perspectiva e das preferências do biógrafo), no qual um pesquisador-narrador tenta reconstruir ou costurar certos episódios da vida de um indivíduo a partir da consulta a documentos, cartas, livros, depoimentos orais etc., a fim de compor um painel que, de certa maneira, forneça ao leitor um sentido geral para aquela trajetória (lembro-me do narrador Casmurro tentando “atar as duas pontas da vida” para explicá-la a si mesmo).

Daí o caráter de conhecimento humanístico atribuído ao gênero e a necessidade de se preservar a liberdade de atuação dos biógrafos: diferentemente das formulações sistematizáveis e abstratas das ciências “duras”, no campo das ciências do homem, precisamos narrar para entender. As biografias servem ao conhecimento assim como a História: como exemplo das possibilidades infinitas que brindam a existência humana e a capacidade que temos para aprender moralmente a partir da experiência de outros. 

EDUARDO CESAR MAIA, jornalista, crítico literário, professor universitário, mestre e doutor em Teoria Literária.

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