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“Apesar de toda a nojeira, vivemos na democracia”

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Outubro de 2012

[conteúdo vinculado à reportagem de "Sonoras" | ed. 142 | outubro 2012]

Entre orientações a jovens músicos,
encomendas de obras e contatos solicitados por pesquisadores e jornalistas, Gilberto Mendes continua a produzir textos literários bissextos e artigos para a imprensa, além do Festival Música Nova, suspenso no ano passado por falta de apoio cultural. Em breve entrevista por e-mail à Continente, o compositor comentou sobre suas atividades, a paixão pelo futebol santista, a escassez da música ativista hoje e sua relação com Deus.

CONTINENTE A que atividades você tem se dedicado desde sua aposentadoria como professor? Continua a compor?
GILBERTO MENDES Sempre as mesmas atividades. Tenho uma coluna no jornal O Estado de S.Paulo, já escrevi três livros e terminei agora uma pequena história, ficção. Às vezes, componho, quase sempre a pedidos de amigos pianistas, cantores... Mas não dou mais aulas, sou aposentado da ECA/USP. No máximo, oriento, sem cobrar nada, jovens compositores que vêm me procurar e que eu sinto que são bons.

CONTINENTE Quais as perspectivas de retomada do Festival Música Nova?
GILBERTO MENDES O festival está sendo retomado neste ano, com sede no Departamento de Música da USP, na cidade de Ribeirão Preto; não mais em Santos, onde nasceu há 50 anos. Mas faremos uma parte pequena também em São Paulo, patrocinada pelo Sesc, e uma parte pequeníssima em Santos, também pelo Sesc. Quero castigar a cidade de Santos, que não soube dar valor ao festival. Não digo a cidade, mas a miserável política cultural da cidade.

CONTINENTE Quais os paralelos entre Os meninos da Vila, estreada ano passado, e a Santos Football Music?
GILBERTO MENDES Os paralelos são claros: homenagens ao futebol santista. Santos Football Music foi uma obra para grande orquestra, com produção complicada: três gravadores, participação do público, um joguinho com alguns músicos etc. Os meninos da Vila é uma simples peça para 10 instrumentos; a bola em jogo, representada pelo fluir musical; aglomerações sonoras, equivalentes a vários jogadores disputando a bola; dribles... mas tudo como música. Em dados momentos, alguns músicos cantam uma melodia de incentivo aos jogadores. Eu mesmo ainda não a ouvi, pois estava adoentado. Devo ouvi-la, agora, no nosso festival.

CONTINENTE Por que a música politicamente engajada não tem encontrado eco em jovens compositores?
GILBERTO MENDES Talvez porque,apesar de toda a corrupção política,dessa nojeira que a gente vê poraí, vivemos em plena democracia,felizmente. O que já é ótimo.

CONTINENTE Você continua agnóstico, aos 90 anos? Num trecho de entrevista do DVD A odisseia musical de Gilberto Mendes, você, essencialmente, diz não estar fechado para Deus, mas que esperava por uma manifestação Dele. A serenidade do passar dos anos mudou algo em você nesse sentido?
GILBERTO MENDES Sim, continuo aberto para Deus, principalmente agora, na minha avançada idade, mais perto da “primeira noite de tranquilidade”, sempre à espera de uma manifestação Sua. É uma coisa minha, meio artística. Vejo mais mistério, mais arte, mais poesia na crença do que no ateísmo. Na crença, nesse algo inexplicável, não há nada a ver com essas mil igrejas que andam por aí, nem mesmo com as tradicionais – católicas, muçulmanas etc. É uma questão mais filosófica. Na verdade, a questão de Deus é que se trata de um impasse linguístico, como costuma dizer um amigo poeta meu, Flavio Amoreira. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, repórter especial da revista Continente (interino).

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