“Com o mundo de hoje mais politizado, não no sentido partidário, mas de reconhecimento aos direitos humanos, é natural que alguns outros valores surjam em várias esferas da sociedade. Não seria diferente com a gastronomia. É como se ‘pegasse bem’ para o profissional ter uma preocupação que fosse além do alimento”, opina o chef paraense Thiago Castanho, representante da cozinha nortista no país. Entretanto, o cozinheiro refuta a ideia de que a prática seja mero marketing institucional. “Antes de qualquer coisa, trata-se de uma preocupação com a qualidade do que você vai servir, e de uma exclusividade que você terá”, defende o autor de Cozinha de origem.
Em Belém, nos restaurantes Remanso do Bosque e Remanso do Peixe, junto ao seu irmão, Felipe, o cozinheiro faz fama pelo trabalho consistente que realiza com os ingredientes amazônicos de pequenos produtores – chocolate da Ilha do Combu, ostras de São Caetano de Odivelas, farinha de Bragança, queijo do Marajó. “Além de levantar a bandeira do meu estado, consigo comprar produtos diretamente ao produtor, sem atravessadores, colaborando indiretamente com a geração de renda e, muito mais importante que isso, a manutenção da tradição da agricultura”, pontua.
É com essa filosofia que Onildo Rocha, nome da nova safra dos chefs que se destacam no cenário nacional, toca o seu restaurante Roccia Cozinha Contemporânea, em João Pessoa (PB). Há cerca de dois anos, trabalha em um esquema parecido com um fornecedor paraibano. Seu Dedé, que participou de um curso do Sebrae para aperfeiçoar sua técnica, fornece as folhas e os tubérculos para as casas de Onildo. “Fizemos um trabalho junto com um agrônomo: eu passei as minhas demandas e ele preparou um escalonamento de produção. Assim, o produtor sabe a data em que vai colher e não deixa faltar nenhum item”, diz o cozinheiro, que não vê dificuldade em desenvolver esse tipo de iniciativa.
Chef Hugo Provout tem preocupação especial com o ciclo produtor dos insumos.
Foto: André Nery/Divulgação
“Encontrando o agricultor certo, que assuma o compromisso de entregar o produto, fica fácil. Precisamos multiplicar esse tipo de parceria para ter alimentos orgânicos e fazer com que a cadeia de produtores familiares cresça”. Junto ao Seu Dedé, Onildo Rocha desenvolveu um trabalho de revitalização do arroz vermelho, ingrediente que apresentou a grandes chefs do país, que se renderam ao grão e agora o chamam de “arroz do Onildo”. “Não é preciso atravessar fronteiras para fazer boa comida. Alta gastronomia e comida simples caminham juntas, basta extrair o melhor de ingredientes locais, aqueles que estão debaixo dos olhos, sobretudo, frescos. O agricultor familiar casa perfeitamente com essa cozinha minimalista, em que os detalhes são valorizados”, rubrica o paraibano.
SUFIXO YAGUARA
Em Pernambuco, um dos nomes mais emblemáticos nessa conjuntura é a Fazenda Várzea da Onça, em Taquaritinga do Norte, onde a produtora Tatiana Peebles cultiva o Café Yaguara e tem feito experimentos com produtos suínos da sua própria criação orgânica. Não é raro se deparar com o sufixo Yaguara na descrição dos menus de alguns endereços mainstream da cidade, como Ponte Nova, Quina do Futuro e Prouvot cozinha.bar e Bistrô. “O ciclo do produtor, a qualidade da alimentação e o consumo artesanal dos ingredientes valorizam uma cultura. A relação com o agricultor familiar permite nova cozinha, novo gosto e o desenvolvimento de uma cadeia”, acredita o chef Hugo Prouvot.
Os produtos da Yaguara têm feito tanta fama, que cruzaram divisas. O chef e apresentador de TV André Mífano, do festejado restaurante Vito, em São Paulo, foi ao interior de Pernambuco conhecer os produtos. “É obrigação da gente saber de onde a comida está vindo, essa ligação é importante, não só para conhecer e ter certeza de que é um produto de boa qualidade, mas pela responsabilidade social que o cerca. Como cozinheiro responsável, quero ver como o alimento é plantado, tratado, como as pessoas que colhem são tratadas. Quero me conectar completamente à comida. Fazer alta gastronomia também é isso, reconhecer tudo aquilo que passa pela sua mão como algo especial”, defende o paulista.
CLIENTES ATENTOS
Mas essa não é uma preocupação exclusiva dos bastidores. Nos salões, os clientes também já procuram se familiarizar com as histórias por trás dos ingredientes. “É uma marca do consumo contemporâneo. Consumidores desejam envolvimento emocional, criando experiências gustativas que vão além dos atributos e benefícios dos produtos e serviços. E como vivemos esse zeitgeist de consciência social, que se aplica ao mercado gastronômico, urge essa procura por saber de origens para dar um valor pessoal ao ingrediente”, diagnostica Billy Nascimento, biomédico carioca pioneiro no conceito de neuromarketing, que estuda cientificamente a influência da publicidade no cérebro humano.
Em seu restaurante, Helena Rizzo prioriza a compra de ingredientes a pequenos produtores. Foto: Divulgação
Do Wiella Bistrô, Claudemir Barros concorda com o estudioso. “Claro que ainda não é a maioria. Mas parte dos clientes já pergunta ao garçom a história daquilo que ele está comendo. Se antes tínhamos um problema de ‘não como frango em restaurante porque frango eu como eu casa’, se esse frango mudou a trajetória de vida de alguém, será o prato escolhido do menu”, afirma o cozinheiro. Na despensa do seu restaurante, por exemplo, o insumo que causa comoção, acredite, é o chuchu, que vem da comunidade de Prata Grande, no agreste pernambucano, de uma comunidade que vive do plantio do legume e da macaxeira.
“Lá, uma saca com 50 chuchus custa R$ 6, o que desestimula o plantio. E os agricultores já querem abandonar o ofício em busca de empregos formais. Este tem sido meu objeto de trabalho em palestras de que participo. Alta gastronomia é se preocupar com isso, sim, mas, diferentemente de países que fazem isso há séculos, estamos começando agora”, explica Claudemir, que, com muita técnica, transforma o ordinário ingrediente em um apetitosoceviche.
Eleita a melhor chef mulher do mundo, segundo os jurados do ranking Os 50 Melhores Restaurantes, realizado pela revista inglesa The Restaurant, a paulista Helena Rizzo também faz coro a essa relação com o pequeno produtor. “Quase tudo o que meu restaurante usa vem deles. Mas não vou falar que é uma questão minha, é o movimento de quem trabalha com gastronomia. O caminho é se envolver cada vez mais com o alimento. Para a gente que cozinha, esse contato com a terra, com a agricultura, é vital. Penso que esse movimento acontece de maneira natural e há ganas de todos os lados: da turma do campo que quer crescer e do cozinheiro que precisa dos melhores insumos”, expõe a chef do Maní.
Do Nordeste, Helena Rizzo trabalha com a araruta do “seu Pedro”, no Recôncavo Baiano, e com um produtor de caju de Natal (RN), que envia a cada três dias o fruto para a capital paulista. “Uso muito caju. No Maní, faço um ceviche de caju e o caju amigo, que é um bombom de cajuína com cachaça e manteiga de cacau envolto em sal”. Para ela, a cozinha é um elo entre o homem e natureza. Relação que começa no próprio restaurante. “Empregamos pessoas, trocamos conhecimento, ensinamos, recebemos de volta. À parte isso, tem toda essa questão do alimento, do valor dele, de como trabalhar, começa ali e vai pra fora com a relação com os produtores. Cozinha é um abraço entre gentes para gentes”, reflete.
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