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Poesia: Feito de tempo e memória

Marcelo Mário de Melo lança livro em que reúne 116 poemas já publicados e inéditos, escritos de 1967 até os dias atuais

TEXTO Débora Nascimento

01 de Maio de 2012

Marcelo Mário de Melo

Marcelo Mário de Melo

Foto Reprodução

Em Fahrenheit 451, as pessoas se veem obrigadas a memorizar livros inteiros, como forma de salvaguardar o saber, pois há milícias do governo orientadas para queimá-los. A situação delirante narrada por Ray Bradbury no romance de ficção científica, publicado em 1953, foi vivida pelo escritor pernambucano Marcelo Mário de Melo. No período de oito anos, 43 dias e 19 horas em que esteve detido como preso pilítico, durante a ditadura militar, o autor submeteu-se a memorizar trechos inteiros para não perder seus escritos. “Foi na prisão que me apliquei em decorar, pois os caras davam batidas e levavam os papéis; perdi um bloco de anotação de texto. Desde então, tudo que faço, eu decoro; só se cortassem minha cabeça”, conta o autor, que usará – mais uma vez – a sua prodigiosa e treinada memória para recitar alguns poemas no lançamento de seu mais novo título, Os colares e as contas, no dia do seu aniversário, 24 deste mês, no Museu do Estado de Pernambuco.

O livro, apoiado pelo Funcultura, é uma espécie de coletânea que passeia por quatro décadas, com versos que vêm sendo escritos desde 1967. Nele, o autor reúne 116 poemas distribuídos em cinco seções: Linhas gerais, Poemas antiburocráticos, Coisa de prisão, Poemas verbovisuais e Pichemas. A edição, com tiragem de 1.500 exemplares, traz apresentações dos poetas Pedro Américo e Everardo Norões, que escreveu o prefácio.

Em Os colares e as contas, o poeta volta seu olhar atento e crítico para vários temas. Não lhe escapam a burocracia, a crueldade, a instituição “partido político”, a injustiça, a pobreza e o autoritarismo, em versos nos quais se utiliza de lógica e ironia, mas também de sabedoria, bondade e esperança – ingredientes necessários para a disposição de criar poemas de protesto a essa “altura do campeonato”. “Ainda acredito na poesia de protesto. Um poema pode permanecer por muito tempo, independentemente do seu objetivo. Pode ter uma função momentânea e, ainda assim, uma validade maior. Há no poema um valor histórico. Por exemplo, o que falo sobre a greve de fome (no cárcere, o poeta fez cinco). Ainda há greves de fome no mundo”, observa.

Marcelo não abriu mão de exercer a justiça em Os colares e as contas, talvez pondo em prática a filosofia que cunhou no poema Nem algozes nem vítimas: “Somos todos iguais perante a vida”. Como explica: “O que fiz foi botar os dedos na própria ferida, mas sem caluniar o inimigo. É importante não cometer falta no jogo, isso é difícil. Por isso, critico tanto a direita quanto a esquerda. Não há um milímetro de calúnia, de retórica. Aprendi isso lendo Graciliano Ramos”.

Nos poemas, Marcelo distribui tanto lirismo (“As mães dos presos/ não são propriamente/ pessoas/ são relógios de amor/ que nunca param/ as suas pulsações/ de passos/ lágrimas e solidárias/ esperanças/ carceradas”, em Mães dos presos) quanto humor (“Sinteticamente/ eis a verdade/ o pior da cadeia/ não são as grades/ são os outros presos/ e o diretor”, em O mal-estar do preso ou Poluição humana).

Marcelo Mário de Melo é um homem que não desperdiça seu tempo, está sempre escrevendo versos e prosas, revisando seus inéditos (há ainda muitos engatilhados), desenhando e construindo estantes de madeira. Por ter um senso pragmático, nunca aguarda por inspirações: “Existem poemas mais súbitos, sim. Mas há por aí tentativas de sacralizar o ofício poético. A poesia tem todos os encantos da produção criativa, científica e artesanal. Não quero vulgarizar nem sacralizar a profissão do poeta. Ferreira Gullar diz que é o espanto e o encanto.” Complementando o dito, para o caso dele: e a memória. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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