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Poesia: Estreia em tom de melancolia

Jornalista e cronista, Samarone Lima apresenta primeiros livros de poemas, em que reelabora o passado em versos

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Janeiro de 2013

Samarone Lima

Samarone Lima

Foto Tiago Barros

Conta-se que, um dia, depois de concluir a leitura de um dos artigos de Joseph Mitchell, o editor da revista New Yorker foi até a sala do jornalista e lhe disse: “Sabe, você é um sujeito bem tristinho”. Ele se referia ao tom melancólico que o autor de O segredo de Joe Gould imprimia a alguns de seus textos. Podemos fazer o mesmo comentário em relação ao Samarone Lima que agora se apresenta poeta. Embora a adjetivação soe banal, é natural dizer que seus poemas são bem “tristinhos”, e isso se deve muito a uma memoração de infância, de ancestralidade, que perpassa seus dois livros inaugurais, Tempo de vidro e A praça azul, oferecidos em caixa única ao leitor.

Antes de nos referirmos especificamente ao poeta, podemos dar uma volta ao redor do Samarone Lima jornalista e cronista, mais em busca de afinidades entre suas personas textuais que de méritos ou deméritos. Porque, quando um indivíduo se propõe a escrever em variados gêneros, a tendência do público é estabelecer comparações. “Acho que sou a mesma pessoa, trabalhando com a escrita em suas diferentes possibilidades. Mas sempre tentei botar poesia nos meus textos jornalísticos, nas crônicas, nos livros-reportagem”, pondera ele. A ressalva que faz se refere ao grau de exigência, que afirma ser maior em relação ao texto poético.

A despeito do autor e de seus motivos, sabemos que os gêneros têm suas regras, que são reconhecidas e internalizadas pelo escritor. Como jornalista e autor de livros-reportagem, em trabalhos que demandaram investigação, Samarone Lima destacou-se por se dedicar a temas dos direitos humanos, dos perseguidos, sendo referências desse interesse os livros Zé – José Carlos Novais da Mata Machado, reportagem biográfica (1998, Mazza) e Clamor, a vitória de uma conspiração brasileira (2003, Objetiva). Como cronista, filia-se ao lirismo que admitimos como típico da produção brasileira, personificado na obra de Rubem Braga. Samarone é o cronista das pequenezas e desimportâncias, aspectos tão caros ao gênero.

Sobre seus escritos, o autor diz o seguinte: “Tenho diários desde os 13 anos e sigo com eles até hoje. Nessa época, eu já escrevia poesias. Como gosto muito de solidão, escrever sempre era uma forma simples de ficar só. Na época em que morava na Casa do Estudante Universitário, eu ficava em festa quando os colegas viajavam e eu ficava sozinho, com minha Lettera 22. Depois, veio o jornalismo, foram surgindo livros-reportagem; por último, convidaram-me para escrever crônicas. Foi uma descoberta tardia de algo que adoro, que me dá um enorme prazer. Nas crônicas também me divirto bastante. É como se fosse o meu recreio. Escrever, para mim, é uma forma de ser”.

Se a crônica é “recreio” para Samarone, não se pode dizer o mesmo em relação à sua produção poética. Ainda ouvindo a voz dele, temos o depoimento de que a poesia serve para que faça seus “remendos”, “para lembrar algo que nem sei direito o que é, para dizer o que sinto mais plenamente”. Aos leitores de Tempo de vidro e A praça azul será evidente a função catártica que a criação dessas obras exerceu sobre o autor. O primeiro – um longo poema em 25 partes – é claramente a rememoração do passado, ou, como ele diz, “a recriação poética de uma jornada”, que surgiu de uma frase, o primeiro verso do poema: “Nasci o terceiro/ na linhagem dos homens”.

Embora posto em versos, Tempo de vidro constrói-se mais de imagens que de sonoridades. O ritmo é dado pelo que se “vê” e o que vemos são cenas de um ambiente familiar hostil, em que a rudeza patriarcal contrasta com a sujeição maternal. O afeto escasso, as injustiças. “As deliberações paternas nunca tinham sentido./ Chorei/ enquanto as palavras ardiam/ no fogo do silêncio.// Minha mãe cuidava do pranto alheio/ e engolia o seu”, diz o poema, em que adiante se lê: “Meus irmãos cresceram junto aos meus ossos/ dormimos e sonhamos acordados/ como se cada infância tivesse sua poeira”. Também encontramos um ambiente natural árido, seco. Há recorrência de palavras como “ossos”, “pedras”, de tons queimados, escuros e esmaecidos, sejam literais ou metafóricos.

Mesmo que se trate de uma seleção de 34 poemas entre os que vem produzindo na última década, A praça azul mantém o gesto doloroso, o desaguar de mágoas. Independentes, os poemas guardam mais força individual que as partes que compõem Tempo de vidro, por vezes irregular na sua cadência. Embora vários deles possam exemplificar a persona melancólica que se apresenta aqui, Cada homem faz a síntese: “Cada homem/ me trouxe uma palavra/ um silêncio/ uma cicatriz.// Cada homem/ me deu uma pedra/ me ensinou/ o que não sei.// Uso as palavras/ para cobrir as cicatrizes/ e o silêncio/ para lembrar meu nome”. 

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora-chefe da revista Continente

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