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Poesia: A linguagem como lugar de criação e jogo

No seu terceiro trabalho, 'O livro das semelhanças', Ana Martins Marques afirma seu interesse em refletir sobre o ofício da escrita e seus lugares de acontecimento

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Outubro de 2015

Ana Martins Marques

Ana Martins Marques

Foto Rodrigo Valente

Quem lê os três livros de Ana Martins Marques tem a sensação de estar diante de um projeto poético que caminha com uma segurança delicada pelas imagens, os temas, as formas e ritmos que lhe interessam. Desde Vida submarina, quando poemas de uma vida inteira foram ao encontro do leitor desconhecido, sabia-se que aquela não era uma escritora feita da noite para o dia, e nas entrelinhas dos versos capturava-se também a leitora dedicada. No seu segundo livro, Da arte das armadilhas, veio então a experiência da obra pensada como uma unidade, quando os seus modos de dizer a poesia e o mundo ora se confirmaram, ora se transmutaram aos olhos de quem acompanhava seu trabalho. A partir de sua nova publicação, O livro das semelhanças, recém-lançada pela Companhia das Letras, já é possível falar com um pouco mais de segurança sobre alguns territórios poéticos que a autora persegue incansavelmente.

No livro, Ana reafirma que a linguagem não é apenas o seu lugar de criação e jogo, mas também um motivo de reflexão constante. Não à toa, o termo palavra consta em 21 poemas e o termo poema em 17 deles. Além disso, a primeira seção da obra se organiza em torno da materialidade do livro, contemplado em versos sobre o título, a dedicatória, a epígrafe, o papel de seda, o índice remissivo. Existe uma realidade literária comprimida entre a capa e a contracapa, e existe a realidade do mundo, por isso “que, sendo de onde sou,/ fora do poema eu nunca chamaria/ de ‘tu’”. A percepção das trocas entre essas duas realidades é um dos traços mais sedutores da sua obra.

No terreno da discussão filosófica sobre a relação entre os nomes e as coisas, bem-resolvida no campo linguístico, onde se assume ser arbitrária a escolha das palavras com que designamos aquilo que existe, Ana brinca de descortinar esse falso atamento entre o léxico e o mundo. Afinal, quanto do mundo o léxico comporta? “Quanto do desejo mora/ na palavra desejo?”.

Mas a poesia, ao contrário da ciência, não propõe leis universais, ela sequer responde perguntas simples. Por isso, a problemática “nome-coisa” em O livro das semelhanças se expande, porque, parafraseando Octavio Paz, o poeta não explica a cadeira: coloca-a na nossa frente. Assim, o livro não oferece uma bússola que leva o leitor a entender a operação “palavra-mundo”, o norte que ele aponta é antes o de um labirinto em espiral contínua: “É mais difícil esconder um cavalo do que a palavra cavalo”, “Posso tocar o seu corpo, mas não o seu nome” ou “sei que primeiro se ama um nome sei/ que o que se ama no amor é o nome do amor”.

Há também em Ana Martins Marques uma atenção ao uso natural que fazemos da língua, posteriormente tensionada e revertida em imagens poéticas lapidadas. Em Visitas ao lugar-comum, metáforas cotidianas como “quebrar o silêncio”, “perder a hora” ou “pagar para ver” ganham cenário literário quando, curiosamente, recebem um tratamento que flerta com o literal dessas expressões: “Dobrar a língua/ e ao desdobrá-la/ deixar cair/ uma a uma/ palavras/ não ditas”.

Na seção intitulada Cartografia, uma série de poemas que, para além dos mapas, fala sobre o convite e a expectativa, sobre a possibilidade de aproximação e de encontro, sobre a tentativa de reduzir distâncias ou, se possível, diluir fronteiras. Viagens que giram em torno da experiência e não do deslocamento, assim como nos poemas que levam o nome de Penelópe em Vida submarina. Lá, Ana Martins evidencia a heroína espartana e sua “odisseia da espera” em detrimento de Ulisses e seu retorno de Troia. Aqui, no entanto, os mapas também nos conduzem, nos retornam às questões sobre o mundo e a sua representação.

Em conto de Marcílio França Castro, o autor escreve: “Alinhou no rumo da rodovia a pista tracejada no papel, para fazer coincidir as duas geografias, como se, de repente, o território pudesse configurar uma extensão concreta do próprio mapa, e este fosse uma ruga que o condenasse”. A partir de um alinhamento semelhante, a poeta ergue novas imagens e ora viaja “olhando pela janela do ônibus/ em busca das linhas vermelhas das fronteiras/ ou dos nomes luminosos das cidades”, ora constata que nos mapas “não ventava nem chovia/ e nunca era noite”.

O livro das semelhanças se lança ainda por uma série de outros assuntos caros à literatura: os elementos desimportantes (“se houvesse/ um museu/ de momentos/ um inventário/ de instantes”), a finitude que nos cerca (“Há estes dias em que pressentimos na casa/ a ruína da casa/ e no corpo/ a morte do corpo”) e o amor sempre (“palavra inventada/ para rimar com dor/ coisa aprendida/ nos poemas de amor”). Nesse apanhado de fontes poéticas, outras duas se destacam: o mar e a mitologia.

Os mitos, os heróis, os seres mágicos estão presentes nos três livros da escritora, como é o caso de Penélope, citado anteriormente. Na nova publicação, três poemas põem em diálogo a humanidade e a animalidade dos personagens cantados: Centauro (“cuja parte humana sobrevivesse à parte animal”), Sereia (“centauro/ com sal/ melhor é tua metade/ animal”) e Ícaro(“quando Ícaro/ caiu/ no mar/ a sereia que/ primeiro/ o encontrou/ amou nele/ o pássaro/ele amou nela/ o peixe”). Já o mar, que não contempla Belo Horizonte – cidade natal da poeta –, é um “desconhecido”, uma ausência constante: “aqueles que nasceram longe/ do mar/ aqueles que nunca viram/ o mar/ que ideia farão/ do ilimitado?/ que ideia farão/ do perigo?/ que ideia farão/ de partir?”. 

GIANNI PAULA DE MELO, jornalista.

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