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Pinóquio: Um molde feito da humanidade

Edição de luxo do clássico infantil italiano resgata a história do boneco impertinente e transgressor

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Fevereiro de 2012

Imagem Reprodução

Para aqueles que seguem o pensamento de Rousseau, a criança seria essencialmente pura, pois os homens, na perspectiva do teórico, nascem bons e a sociedade é a responsável por corrompê-los. Quando olhamos aqueles projetinhos de seres, angelicais e aparentemente inofensivos, inclinamo-nos a pensar dessa maneira, mas é preciso lembrar que a natureza remete àquilo que é instintivo. O bebê, por exemplo, apenas entende a sua fome, o seu sono e as suas dores, não enxerga o Outro. É, então, em contato com o mundo, no processo de aquisição de cultura, que alguma moral e senso de solidariedade se estabelecem. Pinóquio, o famoso boneco de madeira criado pelo autor italiano Carlo Collodi, carrega em si justamente essa complexidade da infância. Por um lado, é afetuoso e ingênuo – ainda está se familiarizando com os códigos e as cobranças do convívio em sociedade –, por outro, apresenta os traços de egoísmo e individualismo típicos do humano.

Estamos diante de um clássico que se inscreve no campo da literatura infantil mais tradicional, aquela que se compromete com o direcionamento moral do leitor, mostrando os territórios do certo e do errado. No entanto, esse percurso é feito de forma bastante singular e complexa, pois, já de saída, o personagem principal não é a materialização do bem ou do mal, ele representa a ambiguidade das crianças, o conflito entre os quereres e as obrigações, as vontades e as necessidades. Sua trajetória, aliás, é igualmente vacilante. Pinóquio é uma sequência de erros, arrependimentos, promessas de melhora, não cumprimento de promessas, e, afinal, quem de nós não é exatamente isso? Como sugeriu Benedetto Croce, “a madeira com a qual Pinóquio foi moldado é a própria humanidade”.

Publicado semanalmente no Giornale per i bambini, o primeiro capítulo da obra circulou na Itália há pouco mais de 130 anos, no período em que o país difundia o discurso de unicidade da nação. Naquele momento, Collodi dá vida ao boneco impertinente, porém transgressor, que paga o preço de todos os seus atos inconsequentes. Uma criatura na contramão da conformidade, a princípio destinada a morrer enforcada no fim da narrativa, pois era nessa passagem que o escritor pretendia encerrar a história. A popularidade de Pinóquio, no entanto, obriga que ele viva e, em 1882, o editor do periódico pediu a Collodi que desse continuidade às aventuras do personagem. É curioso perceber que, mesmo depois de atravessar o século, as preocupações de Gepetto com a formação de seu filho são as mesmas de grande parte dos pais de hoje.

No livro, o maior esforço do pai é o de despertar o boneco para os estudos e o trabalho, por isso o ócio é apresentado como algo negativo e completamente condenável. No entanto, Pinóquio se interessa apenas por uma “profissão”: “a de comer, beber, dormir, me divertir e levar o dia inteiro na vagabundagem”. Sua indisposição para a escola é tanta, que, em determinado momento, ele foge para o País dos Folguedos, onde não existem nem livros, nem professoras. Nesse tópico, também são recriminadas as tentativas de ganhar dinheiro fácil, pois, segundo um papagaio que zomba da inocência e ambição de Pinóquio, “para se juntar honestamente algum dinheiro é preciso ganhá-lo ou com o trabalho das mãos ou com o engenho da mente”.

O autor utiliza ainda a experiência da fome para transmitir diversas lições sobre o dever de valorizar o que se tem, a postura do não desperdício e a necessidade de se alimentar não só do que se gosta – questões tratadas na ordem do lúdico e carregadas da lógica controversa de que os pais sempre sabem o que é o melhor para você. Mas, certamente, na maioria das vezes, eles sabem. Outra temática atemporal no processo educativo dos filhos é a mentira, ela também está presente na narrativa de forma marcante e, até hoje, as crianças conhecem muito bem a retaliação destinada às pessoas mentirosas: o nariz cresce.


Imagem: Reprodução

ESTÉTICA
O escritor Italo Calvino, em 1981, escreveu para o jornal La Reppublica sobre a obra de Collodi e ressaltou exatamente essa “capacidade de sobreviver indene às mutações do gosto, das modas, da linguagem, dos costumes”. Isso porque, além de trazer algumas questões centrais da formação das crianças, como as já citadas, o livro abriga verdadeira qualidade estética. O texto de Calvino destaca três componentes que fazem de Pinóquio um livro memorável. Para ele, a história bebe na fonte do romance picaresco, sendo um “livro de vadiagem e de fome, de hospedarias malfrequentadas e esbirros e forcas”, algo que ele considera raro na tradição literária italiana.

Além disso, a narrativa apresenta traços do romantismo fantástico, pois está repleta de imagens expressivas, seja na aparição de personagens peculiares, seja nas terras percorridas pelo rebelde protagonista. Por fim, Calvino afirma ainda que “Pinóquio é um dos poucos livros de prosa que, pela qualidade de sua escrita, convida à memorização de palavra por palavra, como se fosse um poema em versos”. Esse texto de apreciação do livro, escrito na época de seu centenário, tornou-se o posfácio da edição limitada lançada recentemente pela Cosac Naify. Nele, o autor confessa, ainda, que quando começou a escrever, considerava Pinóquio um modelo de narrativa de aventuras. O poeta Ivo Barroso, responsável pela tradução dessa edição especial da grande obra de Collodi e que também já traduziu várias publicações de Italo Calvino, reconhece a precisão do estilo e a ironia de certas frases como algo comum entre os dois escritores.

Em mais um trabalho louvável de recriação de um clássico, a Cosac Naify oferece a Pinóquio um projeto gráfico sofisticado e aposta em uma técnica do final do século 19, chamada cliché verre, para a criação das imagens. O procedimento de ilustração consiste em chamuscar uma placa de vidro com uma vela e, posteriormente, desenhar sobre essa superfície utilizando um objeto pontiagudo. Isso funcionará como o negativo do desenho, a partir do qual serão impressas as imagens. Devido à magia presente do começo ao fim da história, os 36 capítulos do livro exigem, no mínimo, uma ilustração para cada parte, e para esse ofício a editora convidou o artista Alex Cerveny.

Na disposição de textos e figuras da narrativa, houve a preocupação em demarcar o espaço de tempo entre o primeiro fim estabelecido para Pinóquio e o seu recomeço, passagem que equivale aos capítulos 15 e 16. Da técnica, que é contemporânea ao lançamento original do livro, resultam imagens aparente simplicidade, porém significativamente sugestivas e oníricas. Antes mesmo das primeiras páginas, temos acesso a um mapa que nos mostra todas as terras fantásticas percorridas por Pinóquio; da Enganatrouxas à Ilha das Abelhas Operárias, é apresentada a cartografia do maravilhoso universo do personagem. Um universo que, aliás, é muito mais complexo do que sugere a apropriação da Disney ou as várias adaptações simplistas do texto. 

GIANNI PAULA DE MELO, repórter da Continente Online.

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