ESTÉTICA
O escritor Italo Calvino, em 1981, escreveu para o jornal La Reppublica sobre a obra de Collodi e ressaltou exatamente essa “capacidade de sobreviver indene às mutações do gosto, das modas, da linguagem, dos costumes”. Isso porque, além de trazer algumas questões centrais da formação das crianças, como as já citadas, o livro abriga verdadeira qualidade estética. O texto de Calvino destaca três componentes que fazem de Pinóquio um livro memorável. Para ele, a história bebe na fonte do romance picaresco, sendo um “livro de vadiagem e de fome, de hospedarias malfrequentadas e esbirros e forcas”, algo que ele considera raro na tradição literária italiana.
Além disso, a narrativa apresenta traços do romantismo fantástico, pois está repleta de imagens expressivas, seja na aparição de personagens peculiares, seja nas terras percorridas pelo rebelde protagonista. Por fim, Calvino afirma ainda que “Pinóquio é um dos poucos livros de prosa que, pela qualidade de sua escrita, convida à memorização de palavra por palavra, como se fosse um poema em versos”. Esse texto de apreciação do livro, escrito na época de seu centenário, tornou-se o posfácio da edição limitada lançada recentemente pela Cosac Naify. Nele, o autor confessa, ainda, que quando começou a escrever, considerava Pinóquio um modelo de narrativa de aventuras. O poeta Ivo Barroso, responsável pela tradução dessa edição especial da grande obra de Collodi e que também já traduziu várias publicações de Italo Calvino, reconhece a precisão do estilo e a ironia de certas frases como algo comum entre os dois escritores.
Em mais um trabalho louvável de recriação de um clássico, a Cosac Naify oferece a Pinóquio um projeto gráfico sofisticado e aposta em uma técnica do final do século 19, chamada cliché verre, para a criação das imagens. O procedimento de ilustração consiste em chamuscar uma placa de vidro com uma vela e, posteriormente, desenhar sobre essa superfície utilizando um objeto pontiagudo. Isso funcionará como o negativo do desenho, a partir do qual serão impressas as imagens. Devido à magia presente do começo ao fim da história, os 36 capítulos do livro exigem, no mínimo, uma ilustração para cada parte, e para esse ofício a editora convidou o artista Alex Cerveny.
Na disposição de textos e figuras da narrativa, houve a preocupação em demarcar o espaço de tempo entre o primeiro fim estabelecido para Pinóquio e o seu recomeço, passagem que equivale aos capítulos 15 e 16. Da técnica, que é contemporânea ao lançamento original do livro, resultam imagens aparente simplicidade, porém significativamente sugestivas e oníricas. Antes mesmo das primeiras páginas, temos acesso a um mapa que nos mostra todas as terras fantásticas percorridas por Pinóquio; da Enganatrouxas à Ilha das Abelhas Operárias, é apresentada a cartografia do maravilhoso universo do personagem. Um universo que, aliás, é muito mais complexo do que sugere a apropriação da Disney ou as várias adaptações simplistas do texto.
GIANNI PAULA DE MELO, repórter da Continente Online.