Arquivo

Perdas e danos no Chaco argentino

Primeiro romance da escritora argentina Selva Almada lançado no Brasil, 'O vento que arrasa' trata, no final das contas, da complexa relação entre nós, pessoas

TEXTO Priscilla Campos

01 de Outubro de 2015

Selva Almada

Selva Almada

Foto Pablo Cruz/Divulgação

No improvável encontro entre os pormenores arquitetônicos do Império Romano e as amplas variações térmicas do Chaco argentino, situa-se o romance O vento que arrasa, de Selva Almada. Lançado pela Cosac Naify neste semestre, o livro surge como um objeto cultural que demanda certo grau místico de suas pretensas análises críticas; algo não relacionado à descrição de sensações ou palpites intuitivos, mas, sim, à valorização de uma narrativa do espaço associada a qualquer ordem metafísica da escritura.

Roma, século 1. Através de um tratado atemporal, Vitrúvio designa poder e centralidade à figura do arquiteto. Apesar do seu desejo em solidificar questões práticas direcionadas ao futuro, o romano cria 10 livros – reunidos no volume que se intitula De Architectura – nos quais a força da palavra permanece acima de uma aplicabilidade técnica.

Para além das diretrizes voltadas às construções de muralhas, canais, templos, relógios solares, Vitrúvio apresenta, de forma original, a arquitetura como uma atividade que está em constante diálogo com o sagrado e outras ciências. No capítulo dedicado à astronomia, aponta-se uma relação entre o que está posto (a vivência dos ciclos naturais por meio dos astros) e o que ainda vai ser construído (a beleza e proporcionalidade arquitetônica). É neste ponto que o regime de ventos latino-americanos e a escrita de Almada alcançam uma aresta do conceito de Antiguidade.

Chaco argentino, recorte cronológico indefinido. Pai e filha, costumeiros viajantes, são surpreendidos por um problema mecânico automotivo que, por ora, frustra seus planos de continuar na rota planejada. Topam, por acaso ou sorte, com essa impensável oficina em meio à paisagem solitária. O lugar árido e sufocante é a mira certeira no que diz respeito ao desenvolvimento de O vento que arrasa. Ali, o Reverendo Pearson, sua filha Leni; o mecânico Gringo Bauer e Tapioca realizam uma espécie de dança narrativa do abandono. Movimento esse que se estende ao ato de leitura: ao final do romance, os leitores também estão rodopiando na ideia, sempre submetida ao ermo, proposta por Almada.

Ao longo da breve novela, existe o contínuo paralelo vitruviano do que é tido como definitivo – forte influência das alterações climáticas na dimensão textual, ausência materna, busca ou fuga religiosa – com o que ainda vai ser erguido: a escritora argentina parece ter perfeito controle de como manejar as diversas possibilidades de recortes narrativos pósteros que irrompem ao longo do livro. “O romance fala, talvez, como a maioria das histórias, dos relacionamentos humanos. Em O vento que arrasa, essas relações estão quebradas ou machucadas de alguma maneira. Existe abandono, sim, mas, no caso das mães de Leni e Tapioca, esse abandono é condicionado: ambas as mulheres se veem obrigadas a deixar seus filhos por várias razões”, explica Selva Almada, em entrevista à Continente.

A argentina afirma manter uma postura “contra a ideia mentirosa da ‘família unida’, do ‘núcleo de amor’”. Pois, segundo Almada, é no seio familiar que acontece a maioria dos abusos, em especial, os primeiros abusos físicos e psicológicos. “O escritor Fabián Casas tem um verso que ilustra bem o que eu penso: ‘Todo lo que se pudre, forma una familia’”. Um dos fragmentos mais simbólicos de tal disfunção doméstica é quando somos transportados para uma lembrança da garota: “A última imagem que Leni guarda da mãe é através do para-brisa traseiro do carro. Leni está dentro, ajoelhada no banco, com os bracinhos e o queixo apoiados no encosto. (…) A mãe faz menção de ir até o carro, mas o Reverendo se interpõe e ela se congela em meio ao movimento. Estão brincando de estátua, pensa Leni, que sempre brinca disso, sempre em pátios diferentes e sempre com crianças diferentes, depois do sermão dominical”.

DEUS E NATUREZA
De acordo com a escritora, a ideia de família quebrada é um tema frequente em seus romances e neste não foi diferente. Porém, O vento… traz essa noção de despedaço ampliada para o vínculo religioso, e, também, para a interação dos protagonistas com os elementos naturais. “Em alguns momentos, Deus e a natureza parecem negligenciar, de certa forma, esses personagens”, reflete. No arcabouço do enredo, o diálogo com o sagrado é interposto por uma prosa concisa e pragmática. O salto de linguagem causa um estranhamento que parece fazer parte da perspectiva de preservar o leitor naquele local pouco frequentado; um espaço estranho no qual curiosidade e vazio estão incessantemente juntos.

Ao mesmo tempo em que promovem algum tipo de repulsa, os sermões escritos por Almada possuem elementos ligados à hipnose; são catárticos numa medida doutrinária e perversa, o que causa certa perturbação: “Se a pessoa mais saudável que há entre vocês saísse nua no meio de uma noite chuvosa de inverno, há noventa e nove por cento de probabilidade que acabe pegando uma pneumonia. Do mesmo modo, se deixam o corpo entregue ao pecado, há noventa e nove por cento de chances que o Demônio se apodere dele. Cristo é amor. Mas não confundam amor com covardia, não confundam amor com escravidão. A chama de Cristo ilumina, mas também pode provocar incêndios”.

A argentina assegura que a tarefa fundamental de um escritor é debruçar-se sobre a linguagem. “Eu gosto de dizer que as vezes trabalhamos contra a linguagem também, no sentido de desmontar um mecanismo e trocar as peças de lugar. Em O vento… trabalhei com uma estrutura simples, pequena, econômica. Quando começo a escrever uma história, levo um bom tempo até encontrar o tom. Às vezes, esse tom está relacionado ao argumento. Neste caso, pensei que o romance deveria ser escrito como um sussurro; um murmúrio, algo parecido com o jeito dos crentes falarem com Deus”, detalha.

Apesar das possíveis conexões com a obra de Vitrúvio, a formulação do tempo em O vento que arrasa subverte toda a ideia estética da Idade Antiga, na qual a monumentalidade, formada por seus ideais simétricos e definições matemáticas, é o que era considerado belo, oportuno. O livro de Almada evoca o fascínio por uma representação das ruínas, de algo que ficou preso entre o passado e o presente. Com isso, a temporalidade é turva, inspira tanto a ideia de memória – como nos momentos de recordações empreendidos pelos personagens –, quanto a de fugacidade; uma lembrança do memento mori: o Chaco argentino como espelho, no qual você reconhece não só o fim daqueles sujeitos, mas o seu, também. 

PRISCILLA CAMPOS, jornalista, mantém o blog de literatura Fuga para o Oeste.

Publicidade

veja também

Pesquisa: Teatro para a infância

“Não tive tempo de ser cinéfilo”

“Mesmo um filme que não fale diretamente de política, é político”