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Otto: A felicidade como um fundo falso

Novo disco do artista não rompe com passado, mesmo tendo sido adjetivado como “solar” e “pop” pela crítica

TEXTO Schneider Carpeggiani

01 de Novembro de 2012

Otto

Otto

Foto Divulgação

Preâmbulo necessário: em italiano, pentimento designa um processo em que os esboços iniciais de um quadro são encobertos pela imagem definitiva. Muitas vezes, durante o restauro de uma obra, acabam sendo descobertas as marcas que o artista decidiu deixar de lado. Não há arte final sem rascunhos ou abandonos. Mas pentimento também significa, pura e simplesmente, arrependimento.

No final dos anos 1990, Otto talvez tenha percebido sinais de esgotamento na temática urbana que marcara até então o manguebeat e acabou desviando seu olhar para a construção de uma obra pautada por afetos e vivências. Cada novo disco seu é a adaptação de um momento vivido, em que a semelhança com fatos e pessoas reais não consiste numa mera coincidência. Da exposição de uma gramática pessoal em Samba pra burro a Certa manhã acordei de sonhos intranquilos, o “álbum da separação”, Otto é pura autobiografia.

Moon 1111 foi recebido pela imprensa com adjetivos imediatistas de obra “pop”,“solar”, um processo de desconstrução da melancolia de Certa manhã acordei de sonhos intranquilos, como se Otto estivesse erguendo a bandeira de uma rutura radical. Nada é tão simples, ou automático, assim. Após uma década de altos e baixos artísticos e de exposição pública em revistas e colunas de fofoca, parece que finalmente o cantor se sentiu confortável (e seguro) para deixar vazar seus pentimentos, seus esboços e arrependimentos, num trabalho urgente e sem receio das suas imperfeições latentes.Moon 1111 é felicidade com fundo falso, um intrincado terreno movediço. O avesso do avesso, em que toda a discografia do cantor retorna subitamente quando menos se espera. É compreensível: nada é mais insistente que o passado, ainda mais quando ele deixa de ser convidado.

A faixa de abertura, Dia claro, trava uma luta com seu próprio título: na verdade, é o acerto de contas com a listagem dos culpados, dos mortos & dos feridos, de uma relação amorosa falida. A letra imatura da canção é resgatada pela ênfase que o cantor coloca em cada sílaba proferida, deixando claro que apenas Otto pode falar sobre Otto – a palavra definitiva é sempre a sua; é o compositor de um intérprete apenas. Sua cover de Odair José, a exponencial A noite mais linda do mundo, por outro lado, pede um intérprete com voz mais polida. Odair José não pode falar por Otto e vice-versa. Uma pena, já que o arranjo da versão consegue reverenciar e atualizar a gravação original que tanto contribuiu para nossa afetuosa relação com as rádios populares do passado.

Muito melhor é Exu parede com seus trocadilhos e versos infantis, que nos lembram do quanto o cantor é imbatível na hora de encontrar sentido no nonsense, bem ao estilo Jorge Ben Jor de ser. Exu parede remete a alguns dos grandes momentos de Condon black, um bom álbum ofuscado pelo impacto de Samba pra burro, sua famigerada estreia solo, que acabou lançando uma sombra em toda sua produção – até o momento em que Certa manhã acordei de sonhos intranquilos silenciou o maior dos descrentes.

O dueto com Tainá Muller, Ela falava, traz um bem-vindo (e até inusitado) flerte com sintetizadores oitentistas, mas o clima “Tulipa Ruiz” descontraído da faixa oferece pouco, bem pouco, ao legado de um artista que colocou a diplomática MPB de cabeça para baixo com Bob, sua sintética parceria com Bebel Gilberto. É uma canção fraca, sem sol e força, para ser oferecida como primeirosingle do novo álbum: Ela falava acaba amortecendo o impacto de um projeto que precisa apresentar.

Moon 1111 talvez tenha sido deliberadamente arquitetado como um processo de iluminar a melancolia de antes, no entanto acabou por vazar pentimentos, revisitando momentos que poderiam ter sido esquecidos. Os pentimentos, no final das contas, não são bons conselheiros, porque fazem emergir lembranças que já não são mais do que espectros. Quem sabe, no próximo disco, Otto consiga fazer a ruptura que Moon 1111 apenas ensaiou, ao compreender que a arte final precisa saber a hora de se desligar do seu rascunho. 

SCHNEIDER CARPEGGIANI, jornalista, mestre e doutor em teoria literária, editor do jornal literário Pernambuco e da revista ArtFliporto.

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