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Osman Lins: Encontro com o autor de 'Avalovara'

Há 40 anos, era lançado o romance que colocaria o escritor pernambucano entre os renovadores do gênero no Brasil

TEXTO Raimundo Carrero

01 de Outubro de 2013

Osman Lins

Osman Lins

Foto Reprodução

Não nos tornamos amigos, mas ficamos muito próximos. Conheci Osman Lins numa tarde de julho de 1973, quando recebi a incumbência de entrevistá-lo. Na redação do Diario de Pernambuco, em que trabalhava como repórter, fui informado de que o escritor estava lançando o romance Avalovara, que revolucionaria a literatura brasileira e consolidaria seu nome.

No 13º andar do edifício da AIP – Associação de Imprensa de Pernambuco –, encontrei Osman sentado numa poltrona larga, lendo um livro em francês; ficou de pé e saudou-me com um aperto de mão. Logo em seguida, chegaria o repórter Tarcísio Pereira, então estudante de Jornalismo e estagiário do Jornal do Commercio, proprietário da recém-inaugurada Livro Sete e que mais tarde se tornaria marido de sua filha Letícia e pai dos seus netos.

Logo começou a entrevista, com uma dificuldade: nenhum dos três levara um exemplar do livro. Com exceção de Osman, é claro, teríamos que conversar sobre um objeto que não conhecíamos. Foi um trabalho difícil, com o escritor tentando ser o mais claro possível e recorrendo até mesmo a desenhos. Com uma esferográfica e papel-jornal, no formato de uma página comum, ele procurava ser objetivo, explicando a estrutura do romance e a trajetória dos personagens. Algo novo e surpreendente. Sobretudo para os dois jovens repórteres.

Com a caneta azul, diante dos olhos ávidos dos entrevistadores, Osman traçou no papel um quadrado, uma espiral e as letras do texto em latim Sator arepo tenet opera rotas, que, traduzido a grosso modo, significa “o criador mantém cuidadosamente a obra em sua rota”. Cada letra significa o roteiro dos personagens, num romance extremamente complexo, que entrecruza oito narrativas circulando entre Amsterdã e o Recife, Roma Antiga e o Recife, São Paulo e Paris. Havia em Avalovara pequenos símbolos ou sinais que substituíam os nomes tradicionais dos personagens naquilo que se constituiria o mais inventivo romance da língua portuguesa, exigindo do leitor o máximo de cuidado e concentração, para entendê-lo em sua plenitude.

Entusiasmado e aturdido com o encontro, dispensei o elevador do Diario e subi a pé os lances de escadas que levavam à redação. Tive um trabalho imenso para escrever o texto, de forma que ele ficasse claro para o leitor. Mesmo assim, o jornal publicou apenas os dois primeiros parágrafos, em uma coluna. Sem a ilustração – que era o desenho de Osman.

O Diario perdia a ocasião histórica de publicar uma intensa entrevista do revolucionário criador brasileiro, dispensando a ilustração de próprio punho. Fiquei triste, muito triste e irritado, porque não podia fazer nada nem explicar o que acontecera ao próprio Osman, com quem troquei alguma correspondência. Foi ele, inclusive, quem me chamou a atenção para a obra de Lima Barreto, a quem dedicara muitos estudos acadêmicos, tornando-se um dos seus analistas mais lúcidos. Foi tema, sobretudo, de sua tese de doutorado, que lhe deu a oportunidade de ser professor de Literatura na Universidade de Marília, no interior de São Paulo, onde desenvolvia uma atividade próxima de sua obra literária.

Na entrevista da AIP, Osman não falava apenas do romance, mas fazia graves críticas à ditadura militar que se instalara no Brasil desde 1964, dizendo, entre outras coisas, que era obrigação do escritor remover o que ele chamava de “lixo político”. Usava uma frase várias vezes : “Se o escritor não remove o lixo político, se mistura com o lixo”.

Aí ele se defendia de uma possível acusação de escritor alienado, que poderia ser feita pela crítica. Na época, discutiam-se muito os conceitos de arte alienada e arte engajada. Sem um combate frontal à ditadura e aos regimes totalitários, o artista seria um escritor alienado e formal, portanto, dispensável, porque optara apenas pela forma, a arte pela arte, o que queria dizer, ausência do confronto humano. Esse tipo de acusação derrotava o artista, que passava a merecer um certo desprezo social, com a desconfiança de que apoiaria a ditadura brasileira.

Osman Lins foi um homem de grande caráter, detestava a injustiça e nunca comungaria com desmandos políticos. Sua preocupação essencial era com a literatura, com o destino dela, e se envolvia ao máximo com sua trajetória. Desde cedo se uniu ao crítico Antonio Cândido, de quem ouviu lições de engajamento político e social na obra de arte. Aliás, foi Cândido quem assinou o prefácio de Avalovara, expondo não só o mérito literário, mas o método do romance revolucionário.


Cada uma das letras escritas nesse quadrado com espiral representa o roteiro dos personagens na obra. Imagem: Reprodução 

Na verdade, o prefácio veio impresso em duas folhas à parte, porque Osman acreditava que uma obra de arte ficcional deveria vir sozinha, impondo-se pela sua grandeza, sem qualquer intervenção externa, nem mesmo um prefácio consagrador. O prefácio, aliás, era uma ideia dos editores da Melhoramentos, a que Osman aderiu, não sem um grande custo, até pelo grande respeito a Antonio Cândido.

ENGAJAMENTO
Havia, ainda, o agravante de que Osman se filiava literariamente ao nouveau roman, que na França significava alienação completa, ausência de preocupação política e social. Embora amigo de algumas figuras proeminentes desse movimento literário, o escritor pernambucano deu entrevistas e escreveu artigos explicando sua técnica e o seu distanciamento do movimento literário, apesar das aproximações estéticas. Tudo isso, é claro, durante a repercussão da obra.

Mas a crítica universitária resolveu o problema criado pela patrulha ideológica, mostrando que não havia, em Avalovara, qualquer filiação ao nouveau roman. Em Pernambuco, o escritor Hermilo Borba Filho, radicalmente político e engajado, tratou de mostrar as qualidades políticas e sociais da obra, de modo a desfazer logo todos os equívocos.

De forma que sobre Osman não caiu, de forma alguma, a acusação que ele tanto temera. Ele próprio ainda concederia outras tantas entrevistas e escreveria vários artigos mostrando-se um engajado político determinado e sério. Na verdade, o autor de Avalovara tinha grandes preocupações políticas, mas cuidava muito da forma literária, porque imaginava o romance como radical forma de arte, na sua mais expressiva manifestação.

Depois da entrevista na AIP, voltamos a nos falar poucas vezes, quase sempre por telefone, sobretudo quando ele precisava de informações sobre política e literatura pernambucana. Nas décadas de 1960 e 1970, por exemplo, as chamadas interurbanas eram feitas com dificuldade, e Osman ligava para a redação do Diario de Pernambuco, onde me encontraria sempre, porque era ali que eu trabalhava de domingo a domingo, sem intervalos.

Dono de uma voz pausada, simples, sem nenhuma afetação, no princípio queria saber como andavam os escritores mais jovens, as aspirações, os planos, as publicações. Muito rigoroso com a atividade literária, dizia que o escritor não poderia perder tempo com empregos exigentes e nem mesmo com uma coluna em jornais e revistas, porque estaria jogando energia fora. Energia e tempo. Toda a vida teria de ser usada apenas para a literatura e para os planos de obra.

Publicaria, mais tarde, A rainha dos cárceres da Grécia, com um conteúdo muito mais humano e político: a questão dos aposentados no Brasil, passando pelo drama psicológico das pessoas humildes e pela burocracia governamental que os envolve, sem cair no panfleto, mas sem ser também um livro fácil de ser lido, em que a narrativa apresenta trechos do diário da personagem principal.

É preciso não esquecer, ainda, a construção revolucionária de Nove, novena, outro livro que marca, fundamentalmente, a obra de Osman e que solidifica a sua curta, mas profunda e inquietante, obra literária. Traduzido, ganhou os melhores e mais densos elogios da crítica internacional, destacando-se a versão francesa de Avalovara, muitas vezes considerada uma obra-prima de grandeza insuperável. 

RAIMUNDO CARREIRO, jornalista, escritor, autor de Tangolomango e O amor não tem bons sentimentos, entre outros.

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