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Os povos indígenas e as plantas medicinais

TEXTO Renato Athias

01 de Agosto de 2014

Foto Roberta Guimarães

[conteúdo vinculado à reportagem de "Tradição" | ed. 164 | ago 2014]

Não existe um consenso, ou um discurso unificado,
entre os povos indígenas com relação às plantas medicinais. Existem diferentes concepções, todas elas resultado de centenas de anos de uso e de observação. No caso dos povos Tukano e Hupd’äh, da Bacia do Rio Uaupés (Amazonas), a terapêutica e a prática da medicina tradicional têm uma ênfase muito grande no uso das palavras encantadas. Se cura muito mais com essas fórmulas, que as pessoas chamam de benzimentos. Além das plantas de domínio comum, existem outras, sobre as quais poucos detém o conhecimento, que geralmente funcionam como antídoto, para curas de processos de envenenamento, por exemplo, picada de cobra, ou para ferimentos.

Os projetos de “revitalização de plantas medicinais” são vistos com muita cautela pelos Kumuá, Yaís e Baiaroá, os especialistas de cura entre esses povos. Pois essas plantas estão associadas a um conjunto de saberes e práticas que têm a sua origem nos mitos. Através das palavras encantadas se pode acessar uma fórmula, uma espécie de chave, para o mundo das curas e recuperar o equilíbrio, o bem-estar. Não se pode dissociar o uso das plantas das palavras encantadas, que são de conhecimento mais limitado de especialistas e terapeutas tradicionais, comumente chamados de pajé.

As palavras encantadas são um conjunto de práticas rituais que vão desde um simples pedido de proteção até as práticas mais complicadas de feitiçarias e malefícios. Todas as práticas de cura são realizadas e mediadas pela palavra. Este termo é traduzido como “sopro”, em alusão à forma como o especialista recita as fórmulas, num sussurrar de palavras. Na linguagem regional, o termo “soprar” está associado à prática xamânica. O pajé geralmente usa uma pequena cuia onde é colocada água ou alguma erva para a pessoa ingerir, ou passar no corpo. O mais importante não está no conteúdo da cuia e, sim, no “sopro” no bi’in, como os Hupda’äh dizem.

Em cada aldeia, geralmente existe um Kumu e um Baiá. Eles conhecem a relação de seu clã com os lugares desse mundo. O Yaí não existe em todos os lugares. E nem existem muitos na atualidade, porém todos são poderosos. Eles têm seus corpos preparados para exercer as atividades xamânicas em qualquer lugar, em qualquer clã. Podiam ultrapassar todas as fronteiras, desde que solicitados. Eles têm um aprendizado próprio, que, segundo os sabedores indígenas, poderia durar até nove anos, com o acompanhamento direto de um mestre.

A preparação do corpo para o mundo exigia dessas pessoas um profundo conhecimento sobre o uso das plantas. O kahpi (ayahuasca), o paricá, a coca e o tabaco são plantas que estão profundamente relacionadas aos processos ritualísticos de cura. Esses vegetais são personagens mitológicos e fazem parte das principais fórmulas de encantamento utilizadas por esses especialistas de curas. Essas plantas levam cada especialista em viagens nas diversas camadas do universo cósmico em busca de um conhecimento específico para curar ou para provocar um malefício. De acordo com esses sabedores indígenas, as doenças e mortes entre os índios do Rio Negro têm como causa principal a redução das práticas e da transmissão de saberes tradicionais entres os índios, bem como o desequilíbrio da natureza promovido pelos “agentes da sociedade envolvente”.

As doenças poderiam ser classificadas etiologicamente da seguinte maneira: a) as que levam à morte, as mais graves provocadas e enviadas por outros especialistas (pajés), através de encantamentos. Estas são fortes e mortais; b) as provocadas por venenos preparados e misturados nas bebidas e comidas. Estas podem ser curadas, caso conheça-se a origem e quem as enviou; c) as doenças cujas causas se encontram na floresta/natureza, no rio e as provocadas por seres do ar. Para esses tipos de doenças podem ser encontradas as curas, que são feitas através de fórmulas apropriadas.

Os estudos sobre as medicinas indígenas são apresentados através de uma lógica (racionalidade) do mundo ocidental, tendo como base a medicina oficial. E isso pode ser visto como um obstáculo para a compreensão da prática médica indígena. Os terapeutas indígenas, os detentores de saber, por exemplo, sempre dizem que não conseguem traduzir para o português os sentidos dos termos existentes nas práticas xamânicas. Ou seja, a língua portuguesa não tem palavras que possam traduzir ou indicar certos processos e transformações que a língua indígena possibilita na comunicação. Então, para falar de ideias e de concepções de saúde, doença e cura existentes nas medicinas indígenas, é necessário aproximar-se da língua, da epistemologia e entender a racionalidade indígena. 

RENATO ATHIAS, doutor em Antropologia, coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade.

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