Os 60 anos do dia que marcou o rock
Em 25 de julho de 1965, Bob Dylan eletrificou sua guitarra no Newport Folk Festival, apresentando a nova fase de sua carreira, rompendo com a tradição do folk, provocando revolta em parte do público e mudança na relação entre artista-plateia
TEXTO Marcelo Abreu
25 de Julho de 2025
Frame do vídeo do show de Bob Dylan no festival folk em Newport
Foto Reprodução
Se processos de mudança puderem ser marcados por uma data específica, pode-se afirmar que o rock and roll tornou-se música séria e adulta no dia 25 de julho de 1965 quando Bob Dylan rompeu de vez com a tradição acústica da música folk norte-americana e decidiu se apresentar tocando guitarra elétrica. O show, que está fazendo 60 anos, foi considerado por muitos como uma afronta. Ao abandonar alguns preceitos da música folk e assumir seu papel de direito no mundo do rock, Dylan elevou esse estilo musical a um novo patamar poético e existencial. A apresentação no Festival de Newport foi descrita na imprensa da época como um momento em que o cantor-compositor “eletrizou uma parte da plateia e eletrocutou a outra” e é o tema principal do livro Dylan elétrico – Do folk ao rock, do músico e escritor norte-americano Elijah Wald, lançado recentemente no Brasil pela editora Tordesilhas.
A polêmica em torno da presença das guitarras no folk remete diretamente ao que aconteceu no Brasil, poucos anos depois, com a presença das guitarras no Tropicalismo. O purismo dos defensores do folk norte-americano lembra também as críticas que os sambistas brasileiros fizeram às guitarras durante décadas. O assunto é complexo e normalmente é tratado de forma simplificada na mídia e até mesmo no recente filme Um completo desconhecido, de James Mangold, cujo roteiro foi em parte inspirado no livro de Elijah Wald. A vantagem do livro é que há espaço para discutir o assunto em detalhes e tentar compreender as sutilezas da polêmica. Por exemplo, Wald lembra que Dylan não foi o único, nem o primeiro, a usar guitarras no festival e que o próprio Chuck Berry, pioneiro do rock and roll, fazia parte do conselho curador do evento, junto com The Everly Brothers. Essas e outras curiosidades desafiam o maniqueísmo entre puristas e iconoclastas que muitas vezes domina o debate sobre o assunto.
O festival de música tradicional foi criado em 1959 e aconteceu também no ano seguinte na pequena cidade litorânea de Newport, localizada na ilha de Aquidneck, no pequeno estado de Rhode Island, nordeste dos Estados Unidos. Entre 1963 e 1969, o festival aconteceu todos os anos. Após um intervalo de 15 anos, voltou a ser realizado anualmente em 1985 e é promovido até hoje (com a exceção do ano de 2020). Mas a edição de 1965 ficou marcada pela polêmica e reuniu 47 mil pessoas, nos quatro dias de apresentações e workshops, numa época em que ainda não havia propriamente festivais de rock ao ar livre.
Dylan sempre teve uma ligação forte com o rock, desde a adolescência. Tinha uma fascinação especial por Elvis Presley e Buddy Holly, o que poucos sabiam. Ao mudar-se de Hibbing, no Minnessota, onde vivia desde os seis anos, para estudar em Minneapolis, descobriu a vida boêmia e a música folk. Passou a pesquisar ritmos e estilos dos rincões norte-americanos (country, western, bluegrass, jug band, mountain, Appalachian).
Ao chegar em Nova York aos 19 anos, em 1961, visitou seu ídolo Woody Guthrie (o maior nome do folk) e enturmou-se com os boêmios do Greenwich Village que estavam imersos de militância pelos direitos civis. A música de raiz vivia, então, um renascimento nas grandes cidades com nomes de sucesso como o Kingston Trio, Harry Belafonte, Joan Baez e o trio Peter, Paul & Mary. Em Nova York, Dylan abraçou as causas progressistas e marcou época com seus primeiros LPs recheados de música de protesto e letras de alto teor poético.
Foi com Bob Dylan, em grande parte, que as letras de música pop deixaram de ser apenas variações do “boy meets girl” e passaram a tratar de temas políticos e existenciais, tendência que foi aos poucos sendo incorporada por outros estilos musicais.
No festival de Newport em 1965, as letras ainda eram de protesto, mas o som já havia se descolado do instrumental tradicional, baseado nas tradições rurais do folk (que admitia apenas violões, violinos, banjos, bandolins, gaitas e instrumentos afins). Dylan pisou no palco empunhando uma guitarra Stratocaster abriu o show com a desafiadora “Maggie’s Farm”. Seguiu com “Like a rolling stone” (lançada em compacto apenas cinco dias antes) e “It takes a lot to laugh, it takes a train to cry”. Nas três músicas foi acompanhado por uma banda que tinha Mike Blooomfield na guitarra solo e Barry Goldberg no órgão elétrico. Al Kooper, que havia tocado órgão nos discos, em Newport se apresentou no baixo. A banda contava ainda com outros dois integrantes da Paul Butterfield Blues Band. Em meio a aplausos e apupos do público, quando já havia incendiado a plateia e causado muita confusão, Dylan voltou com um violão e tocou mais duas: “It's all over now, baby blue”, “Mr. tambourine man”.
Foi um momento histórico na música pelo que representou de rompimento com a tradição e com a relação artista-plateia, um show rico em significados que reverberam até hoje. Pena que a edição brasileira do livro de Wald não esteja à altura de importância do assunto. Há inúmeros deslizes na tradução e faltou uma revisão rigorosa como o tema merecia.
Outro livro lançado recentemente no Basil que trata do tema é Folk music – Uma biografia de Bob Dylan em sete canções, da editora Zain, de autoria do jornalista Greil Marcus, considerado um dos maiores especialistas no cantor-compositor. Marcus foi o primeiro editor de música da revista Rolling Stone e escolheu contar a trajetória de Bob Dylan a partir de sete músicas seminais: “Blowin’ in the wind”, “The Lonesome Death of Hattie Carroll”, “Ain’t talkin’”, “The times they are a-changin”, “Desolation row”, “Jim Jones” e “Murder most foul”. Apesar de nenhuma delas ter sido apresentada em Newport (quatro delas são até posteriores), o contexto em torno de cada uma ajuda a entender as polêmicas geradas por Dylan por onde tem passado.
O livro de Greil Marcus traz textos profundos e apresenta um relato pessoal e cultural dos últimos 60 anos. Numa tentativa de definição do impacto causado por Dylan, ele escreve: “No mundo da folk music ou no mundo do rock and roll não existia expectativa nenhuma para canções com a dimensão, a ambição intelectual ou o peso moral de ‘A hard rain’s is a-gonna fall’ e ‘Masters of war’”. Em determinados trechos do livro, no entanto, a prosa de Marcus – frases longas que empilham informações - não ajuda a leitura. O grande número de notas de rodapé acaba prejudicando a fluência do texto.
De qualquer maneira, Folk Music e Dylan elétrico são livros que ajudam a entender polêmicas de um passado ainda relevante nos dias de hoje. Como escreve Elijah Wald, o Festival de Newport de 1965 representou “o fim do renascimento do folk como um movimento de massa e o nascimento do rock como a voz artística madura de uma geração e, em suas respectivas metades da década, tanto o folk quanto o rock simbolizavam muito mais do que música”.
MARCELO ABREU, jornalista e autor de livros de viagens.