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O silêncio como utopia

Produzimos e consumimos sons desagradáveis, ao mesmo tempo em queremos a sorte de uma vida urbana livre do barulho gerado pelo “outro”

TEXTO CAROLINA LEÃO
FOTOS RICARDO MOURA

01 de Janeiro de 2013

O trânsito intenso é responsável por muito da poluição sonora

O trânsito intenso é responsável por muito da poluição sonora

Foto Ricardo Moura

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 145 | janeiro 2013]

Para o educador Murray Schafer, autor de Afinação do mundo, obra referencial sobre os estudos da paisagem sonora contemporânea, o som original de cada comunidade e a relação desta com o meio ambiente (ou seja, a natureza) vem sendo obliterado com a supremacia da tecnologia, maior produtora de ruído, de acordo com o teórico. “A cidade moderna não apresenta esses ritmos acústicos deliberados, como a aldeia ou a paisagem sonora natural. Ou melhor dizendo, a grande profusão de ritmos faz com que eles se anulem uns aos outros. A principal característica da paisagem sonora da cidade é o movimento fortuito”, explica. “Hoje, o mundo sofre de uma superpopulação de sons: há tanta informação acústica, que bem pouca coisa dela pode emergir com clareza”, completa.

O sociólogo Jonatas Ferreira cita David Le Breton (Do silêncio), para quem o silêncio em nossa sociedade só é possível como avaria, quando nossos equipamentos quebram. Em resumo: o silêncio é uma utopia e encontrar uma zona de conforto na cidade, seria praticamente contar com o surgimento de um Eldorado. “Estamos fadados à fala compulsiva e, quando a garganta cansa, preenchemos o vazio com outros ruídos da sociedade da informação. Mais uma vez, podemos ter a ilusão de que o ruído seja um problema tópico e de que adquiriremos o silêncio fundamental ao exercício de nossa subjetividade”, complementa Jonatas, apontando para a já conhecida saturação de informações da cultura contemporânea.

Mais eis aí nossa grande contradição. Produzimos, consumimos, fomentamos tais sons desagradáveis e, ao mesmo tempo, queremos a sorte de uma vida urbana tranquila, sem os excessos ou confrontos com os quais estamos fadados a conviver. “De algum modo, cada um tenta adotar uma estratégia específica de isolamento. Mas essa blindagem sempre significa mais ruído, quer este venha do ar-condicionado, do aparelho de MP3 ou, no caso dos mais afortunados, de sofisticados sistemas de som, home theater, o que seja. O silêncio já não é uma possibilidade cultural da vida contemporânea, embora possamos ter a ilusão de que é sempre possível uma solução técnica”, acredita Jonatas.

As últimas décadas criaram tanto ruídos quanto soluções para os mesmos. Ruskin Marinho, professor de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, afirma, porém, que as preocupações com o assunto não são novidade. Na Roma Antiga, já se falava em tal incômodo. “Antes de se abordar o controle do ruído, poder-se-ia pensar em não produzi-lo. Os ruídos são realmente necessários? Há como diminuir a sua produção? De quem é essa responsabilidade?” Ele aponta que, no meio urbano, a evolução foi lenta e, mesmo assim, alternativas como uso da vegetação e de ordenação do espaço ainda são pouco utilizadas.


Assim como o trânsito, o comércio ambulante ligado ao consumo de música torna as ruas mais ruidosas

“Até hoje, ainda há muita desinformação; ou pior: a má informação, por parte dos gestores e da população, o que poderia ser transformado por meio de estudos. Algumas espécies vegetais são indicadas para o controle de ruído, outras não. Isso vai depender de estrutura, porte, densidade, entre outros importantes aspectos, sobretudo pelo agrupamento dessas espécies e da área onde se localizam”. A observação do especialista toca num aspecto delicado: com a concorrência da construção civil, temos menos áreas verdes e zonas de conforto, uma vez que a discussão sobre paisagismo e a preservação das espécies endêmicas é ainda incipiente.

DECIBÉIS
Quanto à legislação, muitas cidades, como o Recife, possuem leis específicas para o controle do barulho, a partir do grau de incômodo de determinados usos e atividades, de acordo com o zoneamento da cidade, do Plano Diretor e da Lei de Uso e Ocupação do Solo. Uma delas é a Lei Municipal 17.677, de 16 de dezembro de 2010. Ela obriga as construtoras a entregar salões de festas dos edifícios equipados com isolamento acústico. Isso vale para os novos empreendimentos. Os antigos têm até cinco anos para se adequarem a norma, ainda pouco conhecida pelos pernambucanos, mas homologada há dois anos.

Ela fixa em 70 decibéis o índice suportável para a produção de ruídos em áreas residenciais. Segundo o site da Sociedade Brasileira para a Qualidade Acústica (proacustica.org), só no ano passado, o estado recebeu quase 4 mil ligações com reclamações sobre a poluição sonora, sendo 43% referente a incômodos causados pelos vizinhos. No site, outros ruídos, como carros de som e carrocinhas de CD, barulho de bares, construção civil e até mesmo igrejas completam as reclamações. De acordo com a norma NBR 10152 da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), os níveis de conforto num ambiente doméstico giram em torno de 40 e 35 decibéis.

O desconforto indica o mal-estar causado pela interação compulsória que cerca a vida doméstica contemporânea. Uma das provas cabais da modernidade é a extrema individualização do convívio social. Se pensarmos na época que antecedeu o período histórico, vamos lembrar, domesticamente, da pândega que era o cotidiano dos castelos. Ou, para não irmos tão longe, lembremos os sobrados e casas conjugadas, que tanta história ofereceram para a literatura brasileira, com sua fartura de gente e escutas com as quais se criaram diversas lendas urbanas. A interdição do barulho na vida doméstica foi, aliás, um mecanismo usado pelas classes sociais antagônicas, como aristocratas e burgueses, para se diferenciar socialmente.

Quem trata desse comportamento de forma eficiente é o sociólogo Norbert Elias (O processo civilizador). Ele discute a “domesticação dos sentidos e das emoções”, a regulamentação do corpo e da atitude moderna. O autor cita manuais de etiqueta do século 17 que combatem o excesso de sons desagradáveis, sobretudo os físicos, como os arrotos, os barulhos à mesa. O objetivo das cartilhas seria transformar os cidadãos em “civilizados”, socialmente legislados, urbanizados, corteses; contrapondo-os, assim, aos das épocas bárbaras, consideradas caóticas.

SHHHH!
Enquanto os ruídos da rua indicavam o progresso social, saudados com entusiasmo, a vida social dos burgueses deveria ser a mais comedida possível, civilizada e moderna em sua polidez. Até hoje, a questão do barulho permeia a relação entre classes econômicas, tendo a periferia levado a pecha de barulhenta, desde a época em que os cortiços surgiram no Brasil.

Atualmente, o poder aquisitivo amplia essa diferenciação, à medida que os mais abastados conquistam, através de recursos tecnológicos, a oportunidade de uma vida doméstica e social menos barulhenta. “Os ricos se protegem como podem. O isolamento acústico é o equivalente do isolamento social e espacial, com os condomínios fechados, os clubes exclusivos, os muros altíssimos e esses tanques urbanos de vidros escuros que são os utilitários de luxo e esportivos”, comenta o jornalista e DJ Renato L.

Naturalmente que, com essa extrema preocupação com a fronteira doméstica, a evolução tecnológica foi bastante significativa no que diz respeito a estratégias antirruído. “Em determinados projetos, já se consegue barrar a transmissão de até 50 decibéis, de uma sala para outra, combinando-se materiais, formas e distanciamento entre panos de vedações. Há também os materiais absorventes (leves e porosos), utilizados para melhorar a qualidade do som em ambientes fechados e para impedir as reflexões e as amplificações indesejáveis. O desempenho deles é testado pela indústria e comprovado na prática. A funcionalidade acústica depende não apenas da especificação de materiais, mas também da disposição dos ambientes, de maneira a distanciar funções antagônicas, ou seja, aquelas que são emissoras de ruídos e aquelas que necessitam de silêncio”, detalha Ruskin Marinho.

Do ponto de vista urbano, ele lembra que muitas cidades europeias, por exemplo, já passaram por intenso processo de urbanização, mas se mantêm, em média, bem mais silenciosas que as cidades brasileiras. Ele destaca, ainda, que fatores como o aumento demográfico, de construção e serviços, responsáveis por essa saturação sonora, não estão apenas vinculados à verticalização, mas ao apinhamento dos serviços e dos fluxos viários.

“O Recife cresce por justaposição das edificações, tanto quanto pela verticalização. Isso eleva a densidade populacional e de construção e faz mais pessoas morarem juntas e terem a necessidade de respeitar a individualidade dos demais”, afirma. “O Recife também cresce por meio da extensão de sua malha urbana, ampliando sua área. Nesse caso, conurbando-se com os demais municípios da Região Metropolitana e levando populações a morarem cada vez mais longe. Isso gera a necessidade de deslocamentos, aumentando os ruídos provenientes dos automóveis.” 

CAROLINA LEÃO, jornalista e doutora em Sociologia.
RICARDO MOURA, fotógrafo com formação em Ciências Sociais.

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