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O que os cineastas pensam das Malvinas

Iniciada há 30 anos, a disputa entre a Argentina e a Inglaterra pelo arquipélago faz parte da filmografia do país latino

TEXTO Lucas Colombo

01 de Abril de 2012

No filme 'Iluminados pelo fogo', o repórter e veterano Esteban (Gastón Pauls), relembra sua ida à guerra

No filme 'Iluminados pelo fogo', o repórter e veterano Esteban (Gastón Pauls), relembra sua ida à guerra

Foto Divulgação

Em 2 de abril de 1982, argentinos invadiram de surpresa as Ilhas Malvinas, situadas a 500km de sua costa, visando retomar o território perdido no século 19 para os ingleses – os primeiros a desembarcar lá, em 1690. Os militares, no poder desde o golpe de 1976, consideraram, ingenuamente, que a Inglaterra, diante da invasão, aceitaria ceder suas longínquas Falklands, pouco habitadas e de economia desimportante, por via diplomática. Mas não: do outro lado, estava a “Dama de Ferro”, Margaret Thatcher, que, de pronto, organizou a reação. Em maio, a força-tarefa inglesa chegou ao Atlântico Sul e, em junho, após 25 dias de ofensiva por terra e 255 baixas, recuperou o domínio sobre as ilhas.

Os adjetivos que hoje vêm colados a qualquer menção à Guerra das Malvinas – inútil, bravateira, insensata – confirmam-se, quando se sabe do seu contexto. Concluiu-se que o general-presidente Leopoldo Galtieri ordenou a invasão, atiçando a potência militar britânica, com o intuito de desviar a atenção popular de uma economia em crise e da repressão a opositores. Era um meio de insuflar nacionalismo no povo e obter apoio, já que se tratava de uma demanda antiga do país (Thatcher, em Londres, também enfrentava problemas internos e viu, no conflito, chance de se fortalecer). Pelo registrado depois do anúncio da ocupação, a manobra do general deu certo: políticos da oposição uniram-se ao governo, e a Plaza de Mayo, na capital, foi tomada por manifestações de apoio à presidência. Com a rendição, dois meses depois, no entanto, esse apoio ruiu, e a ditadura chegou ao fim. Em 1983, o poder voltou aos civis.

Há quem creia ter a guerra se tornado, nesses 30 anos, “assunto tabu” no país, que, com seu proverbial orgulho, evitaria ao máximo lembrar a derrota e seus 649 mortos. Pode ser tabu entre parte da população, mas nas produções culturais o tema é abordado com relativa frequência – e sempre em tom condenatório. Embora para os mais velhos, e para o governo, a soberania das ilhas ainda seja questão mobilizadora (vide os recentes protestos da presidente Cristina Kirchner contra a “militarização” do local pelos britânicos), o uso político da invasão e o conhecimento da crueldade das batalhas e das condições em que os soldados, na maioria recrutas de 18/19 anos, foram mantidos, tornaram a campanha pelas Malvinas alvo de reprovação praticamente unânime na sociedade argentina. E a arte logo se pôs a refletir sobre isso.

Como um trauma ainda longe de ser superado, a guerra apareceu, desde 1982, em livros e canções de autores das mais variadas vertentes estéticas. O cinema, porém, talvez seja a arte argentina que mais a tem tratado de frente, na mesma chave crítica. O ataque foi quase imediato.


Guerra perpassa relação do casal interpretado por Soledad Villamil 
e Ricardo Darín. Imagem: Reprodução

LOS CHICOS
A primeira ficção sobre a contenda, Los chicos de la guerra, de Bebe Kamin, foi rodada um ano e meio depois. Adaptada do livro homônimo de Daniel Kon, é um drama bélico clichê, em que três garotos de distintas personalidades e gradações sociais têm as vidas abaladas pelo conflito. Levam um dia a dia normal, de jovens estudantes com anseios profissionais e namoros, até vir a convocação. Suas histórias, então, cruzam-se nas Malvinas. Na volta para casa, sofrem dificuldades de readaptação: desemprego, depressão e até violentos distúrbios psiquiátricos.

Los chicos tem produção pobre e – pelo contexto em que foi feito, explicável – abordagem sentimentalista, como explicita a cena em que o pai lê carta que enviará ao filho nas ilhas. Mas é, no geral, fiel aos fatos. Não faltam menções à cegueira patriótica que tomou conta da Argentina, nem planos dos soldados sujos e com frio, em pleno outono gelado. O filme também os exibe a lidar com o despreparo técnico, com a brutalidade dos chefes – “Nos tratam pior do que aos ingleses”, diz um – e a reclamar da fome, o que remete a outro fato amargo: famílias mandavam comida e agasalhos aos filhos, e as caixas nunca chegavam, tal a desorganização, ou a má-fé, do exército argentino. Numa generalização da conduta dos meninos, todavia, mostra-os medrosos e inofensivos, até encantados com a luz das explosões, sendo que há vários relatos sobre a bravura com que os argentinos travaram certas batalhas. Apesar de tratar diretamente da guerra, o drama humano, em suma, é o foco de Los chicos de la guerra.

Mesma proposta é a de Iluminados pelo fogo, de 2005. Também adaptado de um livro, do jornalista Edgardo Esteban, ex-combatente, traz o repórter e veterano Esteban, vivido por Gastón Pauls, a relembrar sua ida às Malvinas, após a tentativa de suicídio de um companheiro de trincheira, Vargas. Entre tomadas da paisagem erma e ventosa do arquipélago, também apresenta soldados jovens a andar na lama, passar fome e frio e pensar no que deixaram para trás. Uma cena irônica e muito ilustrativa é a do tenente perante a tropa de tagarnas (soldados ineptos), dando vivas à pátria e subestimando os ingleses “há semanas dentro de um navio, não adaptados ao frio”. A fala é interrompida por um ataque preventivo de avião britânico contra um alvo ali perto.


Los Chicos de la Guerra foi o primeiro filme rodado depois do confronto bélico entre Argentina e Inglaterra. Foto: Reprodução

Dirigido por Tristán Bauer, Iluminados pelo fogo tem produção bem mais apurada que a de Los chicos – as cenas de combate são excruciantes – e, outra diferença, não reduz os soldados a medrosos. Não consegue, no entanto, fugir do melodrama no final, quando Esteban, para se entender com o passado, volta às ilhas e chora, com uma canção lamentosa ao fundo. A cena foi gravada nas Malvinas, pela primeira vez num filme sobre a disputa. Veem-se os campos minados, o cemitério dos soldados e até um aviso escrito: “Argentinos: serão bem-vindos, quando deixarem de reclamar a soberania e aceitarem nosso direito à autodeterminação”. Os kelpers, habitantes do lugar, já expressaram que querem seguir pertencendo à Grã-Bretanha. Mas a postura antibélica do filme se enfraquece no último instante, com a aparição, nos créditos, da frase “Las Malvinas son argentinas” – a mesma de muitas placas espalhadas pelo país.

Iluminados pelo fogo toca em outro ponto forte: o suicídio de veteranos. Calcula-se que mais de 400 se mataram nessas três décadas. Ao regressarem, os recrutas, muitos com traumas de guerra, não tiveram proteção oficial, nem assistência psicológica. A sociedade, após o furor de abril, recebeu-os com indiferença, e o governo, ao que parece, queria esquecê-los. Só em 1990 começou a ser paga uma pensão. Nas ilhas, também houve tortura. Fica-se sabendo, em Iluminados, que Vargas, por ter roubado para comer, foi punido com estacamiento: horas deitado no chão gélido, com mãos e pés amarrados a estacas. Los chicos de la guerra tem cena parecida. Os dois longas cumprem, ainda, o papel de denúncia, já que os comandantes argentinos obrigaram a tropa ao juramento de não contar nada sobre o que viveram nas Malvinas.

PANO DE FUNDO
El visitante (1999), de Javier Olivera, e Palabra por palabra (2008), de Edgardo Cabeza, não lançados no Brasil, são produções igualmente ambientadas na guerra. O cinema argentino, entretanto, de reconhecida maturidade, tem abordado a Guerra das Malvinas também em romances e comédias, narrativas em que o conflito bélico não está à frente da ação – é um dos elementos de “pano de fundo”. Caso de O mesmo amor, a mesma chuva, de 1999, dirigido por Juan José Campanella, o mesmo realizador do oscarizado, e ótimo O segredo dos seus olhos (2010). Os protagonistas também são Soledad Villamil e Ricardo Darín. História de amor com alguns chavões do gênero, mas bons diálogos, assenta-se – como de praxe em Campanella – no contexto social e político argentino recente; aqui, do fim do regime militar ao governo Carlos Menem.


Na comédia Um conto chinês, Sebastián Borensztein (Ricardo Darín) é um amargurado veterano da guerra que acolhe um jovem chinês. Foto: Divulgação 

A guerra é um dos eventos históricos a rondar as idas e vindas do casal. Em off, ele, escritor, vai comentando as situações e, ao presenciar a redação da revista em que publica contos, parada, assistindo feliz na TV ao pronunciamento de Galtieri, pensa: “O governo, ébrio de orgulho pelo êxito da nação, decidiu ampliar seus horizontes e nossa capacidade de espanto”. O rosto de Galtieri aparece através de uma garrafa de vinho posta ao lado do aparelho, numa troça com sua fama de bebedor. Mais adiante, o ufanismo de então é representado por uma cena em que se vê a redação, espaço onde deveria haver uma postura crítica, toda decorada com bandeiras.

Darín também protagoniza Um conto chinês, de Sebastián Borensztein, sucesso de bilheteria na Argentina e no Brasil, em 2011. Como Roberto, solitário comerciante que se vê obrigado a acolher um jovem chinês, monta a comédia clássica de contrastes, mas seu personagem não é um tipo raso. O conflito nas Malvinas surge brevemente, porém de forma marcante, para explicar sua misantropia e amargura. Roberto é um veterano, e esse passado também explica sua mania de colecionar notícias de jornal sobre casos estúpidos: ele se interessa por absurdos porque vivenciou um. O flashback se dá ao final do longa, mas uma cena do início traz Roberto recusando um presente de fabricação inglesa, o que reforça o ressentimento contra a Grã-Bretanha e a convicção de que a guerra foi uma loucura, mas uma causa justa, ainda existentes em veteranos e em parcela da população local. O personagem, por sinal, depõe que os ingleses trataram prisioneiros inimigos “como merda”, sem se referir à truculência dos próprios militares argentinos contra seus homens.

Se não entram na categoria “grande cinema”, os títulos acima também não maculam a tradição de bons roteiros, atuações e “técnica” (fotografia, som...) do cinema argentino. Esse, ao tematizar tal fato indigesto da história do país, seja em narrativas duras ou leves, direta ou indiretamente, contribui para não ser esquecido um episódio que alguns almejam ocultar. Quando revela traumas de uma sociedade e mostra questões políticas reverberando ali, na vida das pessoas, a arte cumpre uma de suas tarefas mais bem-vindas e salutares. “A ficção”, disse o escritor Julio Cortázar, “é a história secreta das sociedades”. Pois, no caso da ficção fílmica portenha em relação à guerra e seus efeitos, esse papel tem sido executado com eficiência e bom senso. O que faltou aos que estavam no poder em 1982. 

LUCAS COLOMBO, editor e colunista do site Mínimo Múltiplo, professor de Jornalismo Cultural da Unisinos.

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