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O potencial criativo do humor

TEXTO Daniel Kupermann

01 de Julho de 2011

Sigmund Freud

Sigmund Freud

Foto Reprodução/Max Halberstadt

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 127 | julho 2011]

Há algo no fenômeno humorístico
que parece provocar a incompreensão.“Perde-se o amigo, mas não a piada”, diz a expressão popular. O que seria esse elemento capaz não apenas de fazer rir, mas também de ferir suscetibilidades, comprometendo relações afetivas e mesmo provocando conflitos interculturais, como aqueles a que assistimos em passado recente em torno das charges do profeta Maomé publicadas por um jornal dinamarquês?

Segundo Mikhail Bakhtin, autor de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de François Rabelais, há no riso uma dimensão ambivalente, a um só tempo destruidora e regeneradora, que amortalha o que se mostra velho e antigo e celebra o que é novo. E o humor – ao menos o freudiano, do qual tratarei aqui – é filho do realismo grotesco e do riso ambivalente cultivado nos carnavais medievais e renascentistas, configurando sua mais elaborada versão moderna. Talvez por isso ele se apresente sempre paradoxal, ferino e doce, sua faceta trágica sugerindo o cômico, sua vertente risível evocando a lágrima.

Um exemplo da biografia de Freud (foto) é emblemático. Liberado pelos nazistas para expatriar-se na Inglaterra pouco antes do início da Segunda Guerra e do extermínio sistemático dos judeus, foi-lhe exigido que assinasse um documento declarando que não sofrera maus tratos, ao qual o psicanalista teria acrescentado: “Posso recomendar altamente a Gestapo a todos”.

O biógrafo Peter Gay, ao analisar o episódio, se embaraça, questionando se esse gesto provocador não indicaria um desejo inconsciente de Freud de morrer em Viena. Anos depois, Gay revê essa leitura, argumentando que, talvez, estivéssemos simplesmente assistindo a uma prova da vitalidade e do senso de humor “irreprimível” do criador da psicanálise.

Mas se há uma força irreprimível na origem de um dito humorístico, isso não quer dizer que o humor não seja recorrentemente objeto de censura. À guisa de ilustração, retomarei um exemplo mais próximo de nós.

Dias antes da morte do papa João Paulo II, assistimos a um episódio que provocou forte comoção. O papa dirigiu-se à sacada da sua janela no Vaticano para benzer a população, mas não conseguiu pronunciar palavra, malgrado o esforço visível em sua face contorcida, imagem amplamente divulgada pela mídia, a partir da qual o cartunista Aroeira desenhou uma charge para um jornal carioca com a seguinte legenda: “Serei breve”. Censurada, evidentemente. O papa veio a falecer no dia seguinte ao da não publicação da charge.

O circuito da piada descrito por Freud, em 1905, na obra Os chistes e sua relação com o inconsciente, ajuda-nos a entender as forças em jogo na construção – e na censura – dessa expressão tragicômica. São sempre três envolvidos: a “primeira pessoa”, que conta a piada e nos faz rir; a “segunda pessoa”, de quem se ri – o alvo das pulsões sexuais e agressivas que encontram satisfação no chiste; e a “terceira pessoa”, o público, a quem se conta a piada.

A empresa intelectual de Freud é entender de onde vem o tal impulso irreprimível que praticamente nos obriga a passar adiante uma piada da qual gostamos. Apesar de considerar algumas teorias da época – como a de que contamos a piada para podermos rir de novo dela, seja pelo fato de que ela se renova para nós através da surpresa manifestada pelo ouvinte, seja porque o riso é um fenômeno altamente contagioso –, Freud opta pela concepção de que o público, por meio da zombaria, consente e legitima a transgressão promovida pelo comediante. Afinal de contas, o humorista reivindica uma licença poética ao se permitir - e a nos permitir – rir com o que na vida prosaica não se pode brincar: a “burrice” do português ou da loura, as preferências homossexuais, a “presunção” dos argentinos, a “desfaçatez” dos governantes etc. Como já foi sugerido, o humor não é politicamente correto. Essa é a contribuição feita ao cômico pelo inconsciente.

Mas haveria uma política do humor? Qual seria? De um lado, pode-se pensar que uma piada reforça os laços estabelecidos na comunidade, funcionando como “lubrificante social”, aproximando os iguais às custas de um bode expiatório que, pela sua diferença, é eleito como alvo da agressividade do grupo. Como dizia o filósofo Bergson, para rir de uma piada é preciso pertencer à paróquia. Esse parece ser o caso das rodas machistas e preconceituosas. Porém, é fácil perceber outro tipo de humor, rebelde e não conformista, que elege como alvo as figuras representativas da autoridade idealizadas de modo a manter a ordem no tecido social. Nesse caso, ao invés de reforçar identidades, o humor exerce a crítica e estimula a imaginação, abrindo nosso pensamento a novos estilos de existência e a novas concepções de sociabilidade.

Voltando à charge, pode-se afirmar com segurança que, no circuito freudiano, a “primeira pessoa”, a que provoca o riso, é o próprio humorista, mas a partir daí as coisas se embaralham. De quem se ri? Quem é o alvo, ou a “segunda pessoa” nesse caso? Ri-se do papa, uma leitura afoita indicaria. Mas o chargista ri, principalmente, de si próprio e de nós mesmos, igualmente angustiados pela iminência da morte do pontífice. Ao enunciar as palavras “serei breve”, ele expunha a céu aberto o horror da orfandade que todos – e não apenas os católicos, considerando a posição espiritual do papa em todo o mundo – sentiram durante o período da sua agonia. E, finalmente, quem ri nesse caso? Segundo o editor do jornal, a maioria dos leitores não acharia graça, mas se sentiria ofendida pelo rebaixamento do pontífice. Isso é bastante provável, uma vez que o humor facilmente provoca mal-entendidos.

RIR DE SI MESMO
Em O humor, de 1927, Freud sugere que o humorista ri, sobretudo, de si mesmo. Ou seja, extrai graça mesmo frente à situações dolorosas ou ameaçadoras. Mas, para isso, ele precisa dispor de bastante competência, uma vez que o humor se oporia, nesse sentido, aos nossos interesses narcisistas mais imediatos – não são gratuitas as reações de ofensa ou de ressentimento, quando o sujeito se depara com sua impotência. O exemplo paradigmático é o do condenado à morte que comenta com os algozes que vieram buscá-lo, na segunda-feira pela manhã: “É, a semana está começando otimamente”.

A operação psíquica empreendida pelo humorista implica tratar a si próprio assim como um adulto trata o sofrimento de uma criança desolada porque o seu sorvete caiu no chão. Para isso, é preciso “identificar-se até certo ponto com o pai”, o eu superinvestindo no supereu, o que o permite relativizar as angústias provocadas pela situação. Um modo de promover um distanciamento de si e de se perceber numa perspectiva mais elevada, a partir da qual o supereu enunciaria bondosas palavras de conforto, como: “Olhe, o mundo que parece tão perigoso não passa de uma brincadeira de criança, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria”. Essa é a contribuição feita ao cômico pelo supereu. É possível, assim, suportar a inexorável condição de desamparo que nos foi imposta desde o advento da modernidade, sem o consolo para a tragicidade da existência, antes obtido pela devoção ao rei ou pela crença inabalável em Deus.

Não seria por isso que os humoristas suscitam tanta admiração (e estão, aliás, entre os artistas mais bem-remunerados pela indústria do entretenimento)? De fato, sua arte nos possibilita escapar do peso opressivo das idealizações e resgatar o poder da imaginação e da ilusão criadora infantil, permitindo-nos voltar a brincar, aliviando a carga imposta pela vida adulta.

Por outro lado, é preciso reconhecer, atualmente, a onipresença do “humor de massa”, acrítico e publicitário, próprio de uma sociedade hedonista, como observa Lipovetsky a partir do diagnóstico de que vivemos em uma “sociedade humorística”, na qual nada mais é levado a sério. É preciso discriminar do que queremos rir, para que não sejamos transformados em cínicos entristecidos que, como professava Nietzsche, desaprenderam efetivamente a rir. 

DANIEL KUPERMANN, Professor do departamento de Psicologia Clínica da USP e psicanalista.

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