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O marco zero da carta de Caminha

O documento do escrivão deu o tom que vincularia a produção cultural brasileira à temática sexual, ao longo dos séculos

TEXTO Gilson Oliveira

01 de Novembro de 2012

Nesta pintura de Albert Eckhout, a representação da índia brasileira explicita sua nudez

Nesta pintura de Albert Eckhout, a representação da índia brasileira explicita sua nudez

Imagem Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 143 | novembro 2013]

Perpassada por um “voyeurismo quase pornográfico”.
É assim que Denise Saive, da University of Wisconsin – Madison, se refere, no artigo A carta de Pero Vaz de Caminha: pornografia do século XVI?, à missiva que o escrivão enviou a Dom Manuel I, rei de Portugal, dias depois da chegada ao Brasil. Discorrendo sobre a nudez das indígenas, disse Caminha: “(...) suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tinham nenhuma vergonha”.

Chamando a atenção também por ser um documento oficial, e dirigido ao soberano, a carta parecia dar o tom nem um pouco inocente que marcaria a produção cultural brasileira ao longo dos tempos, a começar, talvez, pelos versos de Gregório de Matos, conhecido como Boca do Inferno. Com os anos, as coisas foram “pero-vaz-caminhando”. Até os poetas “sérios” exercitaram o gênero, como Manuel Bandeira (A cópula) e Carlos Drummond de Andrade (A bunda, que engraçada). Um caso à parte é o do escritor Jorge Amado, colocado por Mário Souto Maior no topo da “literatura boca-suja”.

Sem palavrões – até pelo fato de ser “mudo” –, o cinema brasileiro, ainda na década de 1920, começa a botar as unhas pornográficas de fora em filmes como Vício e beleza (1926), de Antônio Tibiriçá, e Depravação (do mesmo ano), de Luiz de Barros. Como mudanças sociais significam também transformações na linguagem, nos anos 1960, o palavrão começa a fazer a festa na área cinematográfica com produções como Os cafajestes, de Rui Guerra. Festa que ficaria ainda mais animada na década seguinte – apesar de a censura cismar de apagar a luz – com a chegada da pornochanchada, cujo slogan, como alguém já disse, parodiando o do Cinema Novo (“uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”), era “uma câmera na mão e um casal nu na cama”.

Surgido em fins do século 19, o teatro de revista, ou teatro rebolado, incomodava até pelos títulos dos espetáculos, como É xique-xique no pixoxó, Tifutuco no futuca e Tem bububu no bobobó. Nele, atuaram atrizes que ficaram famosas também pelos palavrões. Uma delas, Dercy Gonçalves, falando sobre a crescente aceitação destes pela sociedade, disse: “Antigamente, diziam que eu era p... Hoje, dizem que eu sou cultura”. Outra, Leila Diniz, conseguiu preocupar até mesmo o pessoal de O Pasquim, para o qual, em plenos “anos de chumbo”, deu uma entrevista com cerca de 70 palavrinhas que precisaram ser substituídas por asteriscos. A resposta do regime foi a censura prévia, através de documento que, ironicamente, ficou conhecido como “Decreto Leila Diniz”.


A atriz Dercy Gonçalves era famosa por ser uma desbocada
convicta. Foto: Divulgação

SEGURANÇA NACIONAL
No auge da popularidade, no final da década de 1960, quando mulher nua era vista também como questão de segurança nacional, as revistas eróticas bem que iam um pouco além dessa designação, podendo, em muitos casos, serem chamadas de pornográficas, por utilizarem – entre um e outro ensaio fotográfico – palavras que também eram tidas como coisas inventadas pelos comunistas. Um decreto publicado em 1970 chegou a estabelecer que as edições desse tipo de publicação só poderiam ser vendidas depois de registradas na Polícia Federal, determinação que durou até o início da redemocratização, quando começaram a circular livremente, ostentando, ao lado de nus frontais e brindes afrodisíacos, palavras mais cabeludas que os cantores de heavy metal.

E foi na área roqueira que, em termos de música popular, os raios do sol da abertura política mais estimularam o crescimento do palavrão, presente nas canções de muitas bandas, como Titãs (Bichos escrotos), Legião Urbana (Faroeste caboclo) e Camisa de Vênus (o próprio nome do grupo já diz tudo...). Mas, ainda em 1980, Chico Buarque já testava o fim da censura, com Geni e o zepelim, o que, de certa forma, tinha sido feito anos antes pelos forrozeiros, não sem problemas, com o uso de palavras de sonoridade dúbia, a exemplo de Genival Lacerda. Grande divulgador desse tipo de música, o radialista pernambucano Geraldo Freire (também conhecido pelos palavrões que costuma falar em seus programas) revelou em entrevista: “Durante o regime militar, fui várias vezes dar explicações por causa das músicas de duplo sentido”.

Com origem na palavra latina scena, que significa, literalmente, “fora de cena” a obscenidade, na forma de palavrão, marcou forte presença na cena teatral brasileira nos anos da ditadura, mesmo com a censura a peças de vários autores, como Plínio Marcos e Gianfrancesco Guarnieri. “O uso de palavrões era uma tentativa de distraí-los, pois, ao se preocuparem em efetuar cortes de cunho moral, os censores afastavam-se das questões políticas presentes nas peças”, diz a historiadora Miliandre Garcia. Talvez o único setor onde a palavra “merda” é sinônimo de “boa sorte” (por isso mesmo, pronunciada pelos atores antes de começarem os espetáculos), o teatro continua tendo profunda relação com as “palavras feias”. Uma prova recente é a A arte de dizer palavrão – uma p... comédia, com texto e interpretação de Alexandre Ribondi, que no início deste ano fez grande sucesso no Teatro Brasília Shopping. 

GILSON OLIVEIRA, jornalista, revisor e coorganizador do livro Palavra de jornalista.

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