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O burro de ouro

TEXTO GASTÃO DE HOLANDA
FOTOS RICARDO MOURA

01 de Novembro de 2011

Foto Ricardo Moura

O barco surgiu no Lamarão com a mesma sutileza da madrugada. O convés estava quase deserto e um moço debruçado no corrimão da sua nau contemplava a linha dos armazéns. Deucalião regressava ao Recife, ao velho Pernambuco invadido pela maresia (…). Da sua pequena fortaleza espia a cidade que se revela através de torres silenciosas, de chaminés ainda sem fumaça.

O mar está calmo, o porto ungido pela silenciosa madrugada e a cidade, vista assim ao longe, parece uma cidade abandonada. Os guindastes desenhamse imóveis contra o céu. Deucalião correra a vista pela paisagem, caçando um ponto de referência familiar bastante para que tenha a certeza de que está de volta. Sua partida, há seis anos atrás, quando era apenas um adolescente de dezesseis, fora praticamente uma fuga. Assim que entrara no cargueiro, cujo comandante assentara de transportálo de moço de bordo em direção ao garimpo do norte, refugiara-se no pequeno e imundo alojamento dos foguistas como se temesse olhar para trás e arrepender-se (…). A noite era daquelas noites quentes do trópico, noite profunda e martirizante, sobre a qual o brilho das estrelas é apenas uma ironia (…). Mas Deucalião agora queria era começar uma história (…). Mais tarde resolveu chegar à sua cidade natal com dinheiro que desse para ser proprietário e descansar o resto da vida. Prudência demasiada para um jovem. Perdeu tudo, azoado com a fortuna.



Observando a cidade que se ilumina ao estio, Deucalião pousa o olhar sobre ela, contempla-a com certa tristeza e compara-a aos acampamentos da floresta, tendo a impressão de que vai entrar em contato com um mundo ingênuo como o da sua infância desprovida (…). Fixando um campanário de igreja, tem um sorriso para aquela imagem benta e os seus olhos miúdos apertam como se estivessem a esquadrinhar uma proposição duvidosa. 

RICARDO MOURA, fotógrafo, estagiário da Continente.

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