Estrelada pelo gênio canastrão Bruce Campbell, parceiro de longa data de Raimi, a trilogia The evil dead, clássico maior das prateleiras dos aficionados por terror, foi lançada a partir de 1981, influenciando toda uma geração posterior de diretores, roteiristas, atores e produtores que viram bons filmes sendo produzidos com poucos recursos e muita piração (The evil dead foi orçado inicialmente em 85 mil dólares). Já em Bad taste (1987), primeira incursão de Peter Jackson nos longas-metragens, o diretor se valeu do orçamento ínfimo de 30 mil dólares para rodar a história da população de uma cidade dizimada por extraterrestres que utilizam carne humana para abastecer sua rede de fast-food intergaláctica.
A indústria de cinema de terror hollywoodiana é movida por tendências. No final da década de 1970, o filme Halloween - a noite do terror, de John Carpenter, foi o precursor dos slashers, categoria do horror que envolve um assassino psicopata que mata aleatoriamente. A bruxa de Blair (1999) e Atividade paranormal (2007) marcaram a ascensão do found footage (ou “filmagens encontradas”, comumente apresentadas em filmes de terror, mistura de ficção e documentário), e a versão norte-americana de O chamado (2002) fez o mundo se voltar para o cinema de horror oriental. Esses são alguns (poucos) exemplos de um mercado que aposta cada vez mais em retorno financeiro, e pouco em novos nomes e ideias.
The signal é o longa que estreou no Festival de Sundance e deu início ao movimento.
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Há quase uma década, no entanto, um grupo de cineastas independentes estabelecidos em Los Angeles vem, aos poucos, revolucionando o modo de produção dos filmes de terror em Hollywood. Todos eles amigos e participando ativamente das produções de cada um, seja dirigindo, co-roteirizando e atuando no que tem sido chamado pela imprensa especializada de “mumblegore”. Esse tipo de filme - um trocadilho com a palavra mumblecore (leia no box) e com o termo gore, utilizado para indicar filmes que carregam em representações gráficas de sangue e violência - caracteriza-se por produções de baixo orçamento, com elencos amadores, roteiros improvisados. Isso, mesclado ao acervo de referências dos realizadores – zumbis, assombrações, satanismo, magia negra, criaturas fantásticas, serial killers, found footages, antologias de filmagens em VHS, entre outras –, vem rompendo as barreiras do horror e ganhando visibilidade cada vez maior.
Mas, para esses cineastas, mais aterrorizante que uma horda de zumbis sedentos por carne humana ou malucos mascarados assombrando grupos de adolescentes são as perversidades que podem despertar do ser humano, quando colocados em situações-limite. Esse tipo de horror psicológico já era marca do cinema de George Romero desde a estreia de A noite dos mortos vivos, em 1968, em que zumbis serviam como elemento aterrador para revelar as mais terríveis facetas do bom cidadão comum. Dessa forma, situações não naturais como seres humanos transformados em assassinos através de uma transmissão misteriosa emitida por meios eletrônicos (The signal, 2007), ou a chacina familiar promovida por um grupo de assassinos mascarados numa casa de campo (You’re next, 2011), são pano de fundo para o que realmente importa: quando nós nos tornamos os verdadeiros monstros da história.
Exemplos de produção desses cineastas são as coletâneas de curtas-metragens.
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CONEXÕES E FESTIVAIS
Dirigido pelos “garotos-prodígio” Jacob Gentry, David Bruckner e Dan Bush, a estreia do horror sci-fi The signal no Festival de Sundance pode ser considerada um marco inicial do mumblegore e sua inserção nos festivais. Filmado em 10 dias com o orçamento de 50 mil dólares, o filme é composto por três segmentos da mesma história e foi a primeira atuação de AJ Bowen no “ainda não nomeado” mumblegore. Ex-colega de Gentry e Bruckner na Universidade de Geórgia – onde haviam filmado uma série de curtas e longas experimentais –, Bowen já é nome conhecido do gênero. Entre curtas e longas-metragens, o ator participou posteriormente de outros títulos como A casa do diabo (2009), A horrible way to die (2010), You’re next e, mais recente, The sacrament (2013).
Festivais de cinema são porta de entrada para que os realizadores possam vender e promover seus filmes, e fazer conexões para os próximos. Isso se torna ainda mais essencial no caso das produções independentes. Sundance possibilitou o encontro de Gentry e Bowen com Ti West e Joe Swanberg (o nome por trás do mumblecore).
Entre diversos títulos, West dirigiu A casa do diabo e The sacrement, ambos com participação de AJ Bowen. Nesse último, um found footage baseado no Massacre de Jonestown (um suicídio em massa promovido em 1978 pelo líder e fanático religioso Jim Jones), uma equipe da famosa rede de jornalismo investigativo Vice Media viaja até a comunidade fictícia Eden Parish para descobrir algo muito errado sob o lema paz e amor promovido por seu líder e ocupantes. Além de Bowen, também atuam Swanberg, e outro nome proveniente do mumblecore, a atriz Amy Seimetz, que já havia participado de A horrible way to die e You’re next, dirigidos por Adam Wingard.
The Sacrament é baseado no massacre real de Jonestown. Foto: Reprodução
O baixo custo de produção dos filmes possibilita que os realizadores do mumblegore sigam um lema muito importante do universo independente: continuar fazendo filmes, até chamarem a atenção das grandes produtoras, que vão aumentar ainda mais seu raio de distribuição. You’re next, por exemplo, foi produzido ao custo de 1 milhão de dólares pela produtora Snoot Entertainment, e comprado pela Lionsgate pelo dobro. A produção ininterrupta inclui dezenas de curtas-metragens, que volta e meia são lançados pelos diretores em antologias de terror. VHS 1 e 2, de 2012 e 2013, respectivamente, e a compilação de curtas de um minuto The ABC’s of Death (2012) são alguns exemplos.
O mais interessante ao se tratar de mumblegore é a consciência de que as conexões firmadas que possibilitaram todo esse intercâmbio criativo entre diretores seria impossível há pelo menos uma década. Todos firmados hoje em Los Angeles, berço de Hollywood, esses produtores/realizadores devem o sucesso de seus filmes ao aumento dos pequenos festivais de cinema (que, eventualmente, chamam atenção dos “grandes”), ao advento das exibições em streaming como Netflix (e similares), e aos serviços on demand das TVs por assinatura. O que acontece é que os produtores não dependem mais do arriscadíssimo esquema que era gastar rios de dinheiro em DVDs e esperar por um retorno financeiro. Hoje, filmes estão sendo distribuídos para a audiência online, a um baixo custo e sua recepção é o termômetro que definirá seu lançamento em formato físico. Alguns realizadores, inclusive, estão debutando na direção. É o caso de E.L. Katz, parceiro antigo de Adam Wingard, que recentemente abriu mão de escrever roteiros em Hollywood para lançar seu longa de estreia, Cheap thrills, sensação da edição 2013 do SXSW Film Festival, de Austin, Texas.
Um dos recentes lançamentos do gênero, Cheap Thrills foi bem-recebido no SXSW Film Festival de 2013. Foto: Reprodução
Não há limites para o terror. Mesclando os diversos subgêneros clássicos, com filmes instigantes, que dialogam com a atualidade e nos expõem aos maiores horrores contemporâneos, a geração mumblegore têm se firmado e caracterizado pela fuga de clichês. E com liberdade criativa, lembram seus precursores dos anos 1970 e 1980. “É a nova era drive-in”, apontou o editor-chefe do portal Badass Digest em matéria no site LA Weekly. “Eles estão rompendo as barreiras de gênero. Ao invés de se perguntarem ‘eu estou colocando monstros suficientes aqui?’, eles estão mais preocupados com questões como ‘eu estou fazendo o filme que eu quero fazer?’”.
ANTES DO HORROR
Movimento não oficial do cinema independente norte-americano, e que precede o mumblegore, o mumblecore (“geração do resmungo”, em tradução livre) nasceu com as facilidades promovidas pela ascensão da tecnologia digital no cinema. Tecnicamente, os filmes são caracterizados por: menor orçamento, locações caseiras, iluminação ambiente e elenco não profissional. De acordo com o consenso, o primeiro filme do gênero é Funny ha ha (2002), de Andrew Bujalski. Em 2007, o mumblecore ganhou destaque com Hannah takes the stairs, de Joe Swanberg, que encadeou novos autores como os irmãos Mark e Jay Duplass, Lynn Shelton, Ry-Russo Young, Lena Dunham.
Frances Ha, dirigido por Noah Baumbach, tem roteiro de Greta Gerwig, que faz a personagem principal. Foto: Divulgação
Um dos sucessos mais recentes do gênero, o filme Frances Ha (2012, na foto acima), de Noah Baumbach, é estrelado e roteirizado por Greta Gerwig, que em 2008 já havia dividido a direção com Joe Swanberg em Nights and weekends. É uma das principais marcas do gênero essa colaboração entre realizadores multitarefa, presente em filmes como Slacker (1991), primeiro longa-metragem de Richard Linklater; do cinema independente de John Cassavetes; de Ingmar Bergman e da Nouvelle Vague, em geral. São filmes sobre pessoas, crise de identidade da juventude, prezam pelo naturalismo performático e predominância de diálogos – a maioria, improvisados.
Antes restrito às universidades e festivais menos badalados, o mumblecore destacou-se na TV em 2012, com o seriado Girls, da HBO, produzido por Judd Apatow e criado, escrito e estrelado por Lena Dunham (que em 2010 havia dirigido o longa Tiny furniture). Hoje já se pode falar de um “post-mumblecore”, com realizadores – outrora independentes – invadindo Hollywood com produções de maior orçamento, elenco profissional e personagens não convencionais, resultando em bons filmes como Cyrus (2010) e Jeff who lives at home (2011), ambos de Mark e Jay Duplass; Drinking buddies (2013), de Joe Swanberg, e 50/50 (2011), de Jonathan Levine, este último estrelado por Seth Rogen e Joseph Gordon-Levitt (a já mencionada série Girls é a representante desta categoria no âmbito televisivo).
OLIVIA DE SOUZA, editora da Continente Online.