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Mauro Mota: Poeta dos inventários e do tempo que passou

Reedição de poesias e crônicas do autor, que foi identificado pela crítica como pertencente à Geração 45, evidencia seu apreço pelo detalhe

TEXTO Christiano Aguiar

01 de Novembro de 2011

O escritor publicou boa parte de sua prosa em coluna de jornal diário

O escritor publicou boa parte de sua prosa em coluna de jornal diário

Foto Reprodução

Em uma de suas crônicas, publicadas na sua coluna Agenda no Diario de Pernambuco, e agora republicadas pela Cepe, Mauro Mota se propôs a dar alguns conselhos a seus colegas jornalistas sobre a maneira mais adequada de escrever uma reportagem. “Apresentem os fatos em movimento pleno, sem voz de falsete, sem cortinas de palavrório”, ele recomenda. Em seguida, recorda-se de um repórter iniciante que, ao cobrir uma confraternização natalina entre a Aeronáutica e a Marinha, teria escrito: “Confraternização dos filhos de Ícaro com os discípulos de Netuno”. Ora, conclui nosso poeta e cronista, “chamem as coisas pelos próprios nomes (...) chuva não é precipitação pluviométrica, nem cachorro é mastim”.

Mauro Mota foi um poeta dos inventários. Em seus melhores poemas, não teve medo das coisas miúdas que seu olhar poético observava; cantou os objetos da casa, as ervas daninhas, as ruínas, as ruas, os ventos, as paixões de subúrbio, as mães, os cajus, os meninos. E os fantasmas. Embora os conselhos reproduzidos acima tivessem como objetivo a prática jornalística – cujas regras, sabemos, são diferentes da criação de versos –, não é difícil pensar que elas se referem, em algum grau, à própria poesia e prosa desse poeta, nascido em agosto de 1911, no Recife, e falecido na mesma cidade, no ano de 1984. Se a busca de uma linguagem sem aquelas “cortinas de palavrório” é, por um lado, o resultado da constante procura que a literatura brasileira – do final do século 19 até o modernismo de 22 e o romance de 30 – empreendeu a fim de modernizar a própria linguagem, por outro, essa busca também é uma síntese do percurso individual da sua carreira literária.

Professor de História e Geografia, Mauro Mota também foi secretário, redator-chefe e diretor do Diario de Pernambuco, diretor-executivo do Instituto Joaquim Nabuco, diretor do Arquivo Público de Pernambuco e membro da Academia Brasileira de Letras. O reconhecimento foi obtido ainda em vida, como atestam os prêmios que recebeu, tais como o Olavo Bilac, o Jabuti e o Pen Club. Homem integrado ao seu tempo, a trajetória de Mauro Mota nos revela que procurou conjugar a vocação do homem das letras com a de um intelectual público. Sua atuação também foi importante para a divulgação dos novos nomes da poesia da época: editando o Suplemento Literário, entre os anos de 1947-1959, lançou poetas como Carlos Pena Filho e César Leal.

Além de ter publicado estudos sobre a realidade socioeconômica brasileira, como o livro Cajueiro nordestino (que também será relançado pela Cepe, em parceira com a Fundaj), as janelas e caminhos abertos por suas poesias e crônicas muitas vezes descortinam um Recife e um Nordeste que o poeta não quer que esqueçamos. Trata-se de retratos de tempos passados, mas também instantâneos de pequenos dramas e modos de viver, como é caso do famoso poema Boletim sentimental da guerra no Recife. Redescoberta lírica do cotidiano, conhecimento da terra, ressurreição pela memória: é principalmente na sua poesia que essas expressões, que proponho como eixos temáticos gerais, poderão fazer sentido; nos seus versos concisos e musicais encontramos o convite à descoberta do Recife, de Pernambuco, do Nordeste, bem como um apelo para que não esqueçamos o nosso próprio ethos, aquilo que nos faz tão próprios.

GERAÇÃO 45
Alfredo Bosi, no seu História concisa da literatura brasileira, aproxima o nome de Mauro Mota à Geração 45, etapa da nossa literatura moderna que procurou repensar algumas das bandeiras do primeiro modernismo, aquele que, chocando os burgueses em 1922, e liderado por Oswald e Mario de Andrade, ajudou a modernizar a nossa poesia e prosa. Passada a necessária ânsia demolidora daquele espírito de vanguarda – e com burgueses bem menos ariscos –, os poetas de 45 praticaram uma criação literária que privilegiasse inquietações formais, resgatando, inclusive, elementos estéticos do Simbolismo e do Parnasianismo. De fato, no Panorama da nova poesia brasileira, publicação organizada por Fernando Ferreira Loanda e que se propunha a ser um primeiro balanço da Geração 45, havia, segundo Bosi, a proposta de que a poesia ali encontrada deveria ser um novo caminho, “fora dos limites do Modernismo”. Entre os poetas publicados nessa antologia, encontraremos Mauro Mota.


Mauro Mota e Barbosa Lima Sobrinho na ABL. Foto: Repodução

Nesse ponto, é preciso cuidado com as generalizações que muitas vezes a crítica e a história literárias fazem com a obra de um escritor. Se é correto dizer que a poesia de Mauro Mota surge no contexto da Geração 45, e em fecundo diálogo tanto com as trilhas abertas pelo movimento modernista quanto com seus colegas de geração, também é correto dizer que, já no seu primeiro livro, é apresentada uma dicção bem própria. A procura por um verso cujo ritmo seja agradavelmente musical e a retomada de formas fixas, como a elegia ou o soneto, podem ser associadas a um debate geral proposto por sua geração, porém, certamente indicam um projeto estético próprio de Mauro Mota. Logo, já no seu primeiro livro, Elegias (1952), a clareza e a concisão do seu verso contrastam com o formalismo que esperaríamos de um “típico” poeta daquele momento; do mesmo modo, suas imagens são muito menos apegadas, quando o são, a um simbolismo tardio.

Vejamos alguns exemplos de Elegias. Sim, é possível encontrar certo simbolismo diluído, aliado a um romantismo de covas e melancolias lunares, em alguns dos poemas. No bom poema Canto de inverno de navegante fluvial, encontramos versos ao gosto simbolista como “Vem o vento veloz varando as velas”. No poema Rua Real da Torre, temos os seguintes versos de abertura: “Ó Rua Real da Torre,/ que mistérios ocultais/ nos chalés mal-assombrados/ que aos fantasmas alugais?”. Construído todo em redondilhas e com o som predominante, em boa parte do poema, da consoante “s”, os versos fazem uma crônica fantasmagórica da referida rua. Ainda a respeito dessa poesia soturna, a série de poemas intitulados Elegia constitui ótimo exemplo: “Passos incertos sobre as lajes frias,/ sigo em busca de ti, à procura/ do tumulto da vida de outros dias,/ que foi contigo para a sepultura”.

Estamos diante de um perfeito poeta decadentista? Longe disso, pois no mesmo livro há dois dos seus melhores poemas, cuja vitalidade segue caminhos diversos dos que apontei antes. É caso do já citado Boletim sentimental da guerra do Recife, que nos conta a história dolorosa das meninas nordestinas iludidas pelo amor dos soldados americanos (“Ingênuas meninas grávidas/ o que é que fostes fazer?/ Apertai bem os vossos vestidos/ pra família não saber”), ou da triste personagem do poema em versos livres Rondó suburbano, no qual uma senhora de meia idade “abre o piano numa tarde de domingo/ como uma caixa de lembranças e melodias”, recordando, solitária, do tempo perdido da juventude. Nesses dois poemas, não são apenas desencontros amorosos que são tematizados; eles nos dão indícios da própria condição da mulher em uma sociedade ainda conservadora, que emparedava o feminino em ritos sociais e lugares excessivamente marcados (a jovem e “perdida” mãe solteira; a solteirona que passará a vida na solidão). Tanto nos poemas solares quanto nos noturnos do livro Elegias, há um projeto de memória que os unifica. O luto vivido nos sonetos das Elegias, os fantasmas na Rua Real da Torre, os personagens em sua velhice ou desgraça social – os poemas querem dar conta de vidas e tempos que não podem ser esquecidos. Essa será uma constante da sua poesia posterior: embora o tom soturno seja amenizado em prol de cores e perfumes mais exuberantes, a morte continuará presente, mesmo que ao lado dos cajus.

PASSADO NO PRESENTE
Everardo Norões nos recorda que Álvaro Lins considerava a poesia do amigo marcada por um realismo mágico; isso pode ser explicado justamente pela retomada do passado no presente: os fantasmas continuarão voltando nesses versos, porque são os personagens por excelência das fraturas da memória; as vozes de um Pernambuco ainda colonial invadirão o olhar que o poeta lança sobre os monumentos e ruas do Recife; os objetos inventariados em poemas como A dádiva (do livro O galo e o cata-vento) e A gaveta (do livro Os epitáfios) se transformam em vestígios das almas que os manusearam; é o inventário – dos destroços e dos sulcos, do que foi roído pela roda do tempo e da morte – o alvo predileto da poesia de Mauro Mota. Assim, é nessa clave da memória e das ruínas que a essa poesia interessará a degradação social do trabalho – bem-denunciada em A tecelã – e do patrimônio histórico do Recife, como no poema Igreja dos Martírios ou Jesus na Avenida (do livro Pernambucânia).

As crônicas de Mauro Mota estão integradas ao seu projeto intelectual e poético. Não apenas há temas em comum com seus poemas, principalmente no tocante à memória e ao cotidiano, como elas são marcadas por uma linguagem também concisa, dessa vez, tomada pelo bom humor. Considerações sobre a cultura nordestina conectam o cronista ao ensaísta e pesquisador das Ciências Sociais; o resgate da história da cidade do Recife e do estado de Pernambuco é tema de várias crônicas, assim como a sua indignação diante de problemas ecológicos (é tocante sua crônica contra o assassinato de gatos no Recife) e da ameaça ao patrimônio histórico recifense.

Nas 100 crônicas que a Cepe e a Fundaj republicam, encontramos também uma pequena e rica galeria de tipos da classe média boêmia, burocrática e bacharelesca do Recife das últimas décadas, muitas vezes ridicularizada pelo personagem Mateus Camorim, alter ego do poeta. Somos apresentados, por exemplo, ao acadêmico Maciel Monteiro, médico, bacharel, poeta e mulherengo, que dizia ter calos nos dedos, do tanto que levantava as saias das mulheres; ou descobrimos que Tobias Barreto, líder da Escola do Recife e patrono da Faculdade de Direito do Recife, no fim da sua vida, exigiu que seu cérebro fosse conservado no formol, “como se faz com os cérebros dos gênios”.

Dessa forma, seja nas crônicas ou nos poemas, Mauro Mota nos apresenta suas experiências com a cidade, o luto e o passado como o lírico por excelência que foi: construindo conosco um espaço de intimidade. Assim, a reedição de suas obras não é oportuna apenas pelas imagens vívidas que nos revela de um tempo que já passou; elas nos recorda a importância de uma poesia que tenta chamar as coisas pelo próprio nome. 

CHRISTIANO AGUIAR, jornalista, professor, mestre em Teoria da Literatura e doutorando em Letras. 

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