Alfredo Bosi, no seu História concisa da literatura brasileira, aproxima o nome de Mauro Mota à Geração 45, etapa da nossa literatura moderna que procurou repensar algumas das bandeiras do primeiro modernismo, aquele que, chocando os burgueses em 1922, e liderado por Oswald e Mario de Andrade, ajudou a modernizar a nossa poesia e prosa. Passada a necessária ânsia demolidora daquele espírito de vanguarda – e com burgueses bem menos ariscos –, os poetas de 45 praticaram uma criação literária que privilegiasse inquietações formais, resgatando, inclusive, elementos estéticos do Simbolismo e do Parnasianismo. De fato, no Panorama da nova poesia brasileira, publicação organizada por Fernando Ferreira Loanda e que se propunha a ser um primeiro balanço da Geração 45, havia, segundo Bosi, a proposta de que a poesia ali encontrada deveria ser um novo caminho, “fora dos limites do Modernismo”. Entre os poetas publicados nessa antologia, encontraremos Mauro Mota.
Mauro Mota e Barbosa Lima Sobrinho na ABL. Foto: Repodução
Nesse ponto, é preciso cuidado com as generalizações que muitas vezes a crítica e a história literárias fazem com a obra de um escritor. Se é correto dizer que a poesia de Mauro Mota surge no contexto da Geração 45, e em fecundo diálogo tanto com as trilhas abertas pelo movimento modernista quanto com seus colegas de geração, também é correto dizer que, já no seu primeiro livro, é apresentada uma dicção bem própria. A procura por um verso cujo ritmo seja agradavelmente musical e a retomada de formas fixas, como a elegia ou o soneto, podem ser associadas a um debate geral proposto por sua geração, porém, certamente indicam um projeto estético próprio de Mauro Mota. Logo, já no seu primeiro livro, Elegias (1952), a clareza e a concisão do seu verso contrastam com o formalismo que esperaríamos de um “típico” poeta daquele momento; do mesmo modo, suas imagens são muito menos apegadas, quando o são, a um simbolismo tardio.
Vejamos alguns exemplos de Elegias. Sim, é possível encontrar certo simbolismo diluído, aliado a um romantismo de covas e melancolias lunares, em alguns dos poemas. No bom poema Canto de inverno de navegante fluvial, encontramos versos ao gosto simbolista como “Vem o vento veloz varando as velas”. No poema Rua Real da Torre, temos os seguintes versos de abertura: “Ó Rua Real da Torre,/ que mistérios ocultais/ nos chalés mal-assombrados/ que aos fantasmas alugais?”. Construído todo em redondilhas e com o som predominante, em boa parte do poema, da consoante “s”, os versos fazem uma crônica fantasmagórica da referida rua. Ainda a respeito dessa poesia soturna, a série de poemas intitulados Elegia constitui ótimo exemplo: “Passos incertos sobre as lajes frias,/ sigo em busca de ti, à procura/ do tumulto da vida de outros dias,/ que foi contigo para a sepultura”.
Estamos diante de um perfeito poeta decadentista? Longe disso, pois no mesmo livro há dois dos seus melhores poemas, cuja vitalidade segue caminhos diversos dos que apontei antes. É caso do já citado Boletim sentimental da guerra do Recife, que nos conta a história dolorosa das meninas nordestinas iludidas pelo amor dos soldados americanos (“Ingênuas meninas grávidas/ o que é que fostes fazer?/ Apertai bem os vossos vestidos/ pra família não saber”), ou da triste personagem do poema em versos livres Rondó suburbano, no qual uma senhora de meia idade “abre o piano numa tarde de domingo/ como uma caixa de lembranças e melodias”, recordando, solitária, do tempo perdido da juventude. Nesses dois poemas, não são apenas desencontros amorosos que são tematizados; eles nos dão indícios da própria condição da mulher em uma sociedade ainda conservadora, que emparedava o feminino em ritos sociais e lugares excessivamente marcados (a jovem e “perdida” mãe solteira; a solteirona que passará a vida na solidão). Tanto nos poemas solares quanto nos noturnos do livro Elegias, há um projeto de memória que os unifica. O luto vivido nos sonetos das Elegias, os fantasmas na Rua Real da Torre, os personagens em sua velhice ou desgraça social – os poemas querem dar conta de vidas e tempos que não podem ser esquecidos. Essa será uma constante da sua poesia posterior: embora o tom soturno seja amenizado em prol de cores e perfumes mais exuberantes, a morte continuará presente, mesmo que ao lado dos cajus.
PASSADO NO PRESENTE
Everardo Norões nos recorda que Álvaro Lins considerava a poesia do amigo marcada por um realismo mágico; isso pode ser explicado justamente pela retomada do passado no presente: os fantasmas continuarão voltando nesses versos, porque são os personagens por excelência das fraturas da memória; as vozes de um Pernambuco ainda colonial invadirão o olhar que o poeta lança sobre os monumentos e ruas do Recife; os objetos inventariados em poemas como A dádiva (do livro O galo e o cata-vento) e A gaveta (do livro Os epitáfios) se transformam em vestígios das almas que os manusearam; é o inventário – dos destroços e dos sulcos, do que foi roído pela roda do tempo e da morte – o alvo predileto da poesia de Mauro Mota. Assim, é nessa clave da memória e das ruínas que a essa poesia interessará a degradação social do trabalho – bem-denunciada em A tecelã – e do patrimônio histórico do Recife, como no poema Igreja dos Martírios ou Jesus na Avenida (do livro Pernambucânia).
As crônicas de Mauro Mota estão integradas ao seu projeto intelectual e poético. Não apenas há temas em comum com seus poemas, principalmente no tocante à memória e ao cotidiano, como elas são marcadas por uma linguagem também concisa, dessa vez, tomada pelo bom humor. Considerações sobre a cultura nordestina conectam o cronista ao ensaísta e pesquisador das Ciências Sociais; o resgate da história da cidade do Recife e do estado de Pernambuco é tema de várias crônicas, assim como a sua indignação diante de problemas ecológicos (é tocante sua crônica contra o assassinato de gatos no Recife) e da ameaça ao patrimônio histórico recifense.
Nas 100 crônicas que a Cepe e a Fundaj republicam, encontramos também uma pequena e rica galeria de tipos da classe média boêmia, burocrática e bacharelesca do Recife das últimas décadas, muitas vezes ridicularizada pelo personagem Mateus Camorim, alter ego do poeta. Somos apresentados, por exemplo, ao acadêmico Maciel Monteiro, médico, bacharel, poeta e mulherengo, que dizia ter calos nos dedos, do tanto que levantava as saias das mulheres; ou descobrimos que Tobias Barreto, líder da Escola do Recife e patrono da Faculdade de Direito do Recife, no fim da sua vida, exigiu que seu cérebro fosse conservado no formol, “como se faz com os cérebros dos gênios”.
Dessa forma, seja nas crônicas ou nos poemas, Mauro Mota nos apresenta suas experiências com a cidade, o luto e o passado como o lírico por excelência que foi: construindo conosco um espaço de intimidade. Assim, a reedição de suas obras não é oportuna apenas pelas imagens vívidas que nos revela de um tempo que já passou; elas nos recorda a importância de uma poesia que tenta chamar as coisas pelo próprio nome.
CHRISTIANO AGUIAR, jornalista, professor, mestre em Teoria da Literatura e doutorando em Letras.