O trecho faz parte do conto Dagon, primeira publicação realizada por Lovecraft, em 1919. Tinha apenas sete páginas e saiu no jornal The Vagrant. A história, ambientada na Primeira Guerra Mundial e escrita em primeira pessoa, traz o relato de um oficial da marinha viciado em morfina, que é capturado pelas forças rivais e consegue fugir, passando dias à deriva num barco velho. À beira do delírio, o oficial se vê diante de Dagon, uma divindade que habita as profundezas do oceano, e enlouquece perante a grandeza da criatura, até acordar numa cama de hospital, dias depois.
Nesse conto, embora seja o primeiro de Lovecraft, é possível tomar nota de alguns elementos que jamais deixarão seus escritos. O arco narrativo envolvendo um homem comum que avança rumo ao desconhecido e, por fim, enlouquece, é sempre o mote de suas histórias. Talvez por isso sua predileção seja escrever em primeira pessoa, do ponto de vista do louco, daquele que confronta o caos e não suporta o que vê. E aí entendamos que, para Lovecraft, a metáfora para a loucura e para o desconhecido é a dimensão do próprio cosmo diante do homem. Assim, quando o oficial da marinha se vê diante de Dagon, a mensagem contida naquela cena é a de que a humanidade não é nada frente ao que está além da sua compreensão.
Além disso, o gosto pela linguagem rebuscada e o uso recorrente de adjetivos também são características predominantes em sua literatura, o que chega a ser contraditório pelo fato de sua maior referência ser Edgar Alan Poe, dono de um estilo objetivo e claro. No documentário Lovecraft: Medo do desconhecido (2008), de Frank H. Woorward, o escritor britânico Neil Gaiman chega a dizer que o texto de Lovecraft “não é moderno nem dinâmico; não é sequer eficiente e, em alguns momentos, chega a ser risível”, mas reconhece que isso não está relacionado com a grande influência exercida pelo autor na formação do horror.
A questão é que o brilhantismo da obra de Lovecraft não está em um ou dois contos específicos, mas na edificação de uma mitologia única: os mitos de Cthulhu. O autor entendia muito bem a dinâmica que fundamenta a tradição cultural dos povos e se destacou por ter conseguido convertê-la numa experiência estética. Assim, ao reunir todos os contos de Lovecraft, o que temos é a construção de um complexo e fragmentado universo de lendas, mitos, criaturas e personagens que, por vezes, se encontram, interagem, contradizem-se e, sobretudo, caminham rumo à loucura.
Em A sombra vinda do tempo, por exemplo, que conta a história de um professor universitário que desmaia em sala de aula e acorda somente anos depois com a notícia de que, enquanto ele estava desacordado, uma outra personalidade assumiu seu corpo, nós somos apresentados a algumas criaturas com cabeça de estrela-do-mar e asas de morcego. Essas criaturas, embora nada acrescentem ao desenrolar da história e façam parte de um grande e enfadonho apêndice introduzido bruscamente no meio do texto, são fundamentais para o desenvolvimento de outro conto de Lovecraft, o famoso Nas montanhas da loucura. Nele, a trama centra-se numa expedição ao Ártico, onde uma equipe de cientistas acaba por encontrar os cadáveres das benditas criaturas e passa por maus bocados.
Assim como um grande bestiário, Lovecraft também gerou um vocabulário próprio e até regiões geográficas. O conto de estreia, Dagon, seria anos depois relacionado à baía da cidade fictícia de Innsmouth, onde uma população de adoradores do Deus-peixe mora, como visto na história A sombra de Innsmouth. Além disso, a cidade de Arkham e a Universidade Miskatonic não somente se tornaram cenários recorrentes e importantes dentro de sua mitologia, como foram expandidas para outras obras e linguagens, vide a homenagem realizada pela DC Comics ao batizar o manicômio de Gotham City, a cidade do Batman, de Asilo Arkham.
A impronunciável palavra Cthulhu, criada pelo autor, nomeia a mais importante das criaturas colossais e diabólicas de Lovecraft, sendo apenas o mais famoso dentre outros semelhantes, como Shogoth, Shub Niggurath e Yth. Um fato interessante é que, poucos anos após a morte do autor, o argentino Jorge Luís Borges publicou o conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, sobre um obscuro país chamado Uqbar e uma série de conspirações envolvendo a criação de um novo mundo. Tal proximidade com a estética lovecraftiana seria desvendada em 1975, quando Borges dedicou sua então mais recente publicação, O livro de areia, à memória de H. P. Lovecraft, revelando-se um grande admirador do contista de Providence.
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Em 1919, Lovecraft mal tinha conseguido entrar no mercado editorial, quando sua mãe teve um surto psicótico e foi mandada para o mesmo manicômio no qual seu esposo morrera anos antes. O escritor, que dependia financeiramente dela, foi obrigado a deixar a casa e ir morar com as tias. Nessa época, ele chegou a atuar como ghostwriter para conseguir se manter, publicando até textos encomendados pelo ilusionista Harry Houdini. A relação entre os dois, que era tortuosa e logo teve fim, foi explorada com maestria literária e visual pelos roteiristas Hans Rodionoff e Keith Giffen e pelo ilustrador argentino Enrique Breccia na obra Lovecraft, uma biografia em quadrinhos sobre o autor, em que suas criaturas e vida pessoal aparecem entrelaçadas.
Em 1921, o editor George Julian Houtain, que conhecia o trabalho de Lovecraft das suas poucas publicações realizadas até então, convidou-o para escrever um conto na sua revista. Asim surgiu Dr. Herbert West: Re-animator, trabalho que o próprio Lovecraft condenou como a pior coisa escrita por ele. A ironia é que o texto, que permanece inédito no Brasil, foi adaptado para o cinema em 1985, pelo diretor Stuart Gordon, sob o nome de Re-animator, tornando-se um clássico trash da década de 1980 e dando início a uma série de adaptações cinematográficas de baixo custo da obra do escritor. O próprio Stuart Gordon ainda dirigiu Do além, em 1986, Herança maldita, em 1995, e Dagon, em 2001.
Quando a Weird Tales foi fundada em 1923 e Lovecraft passou a se dedicar com exclusividade à publicação, sua vida começou, enfim, a tomar um novo rumo. Nesse período, ele conheceu a também escritora Sonia H. Greene, uma mulher mais velha e divorciada com quem se casou naquele mesmo ano. O casal foi morar em Nova York, onde havia muito mais oportunidades. O problema é que Lovecraft fora educado para ser um gentleman e tinha dificuldade em lidar com o cosmopolitismo novaiorquino. Xenofóbico e até racista, o autor jamais se adaptou e o casamento dele com Sonia ruiu antes mesmo de completar um ano. Sobre o conservadorismo do escritor, o cineasta mexicano Guillermo Del Toro afirmou que os trabalhos de Lovecraft “podiam até mesmo ser referência para a época, mas eram, essencialmente, um registro antiquado dos ideais de um gentleman criado em New England”.
Como alguém que cresceu entre livros e sob uma mecânica educacional aristocrática, neurótica e rigorosa, Lovecraft tinha um fascínio genuíno tanto pela literatura quanto pelas sete belas artes e pelas próprias ciências naturais. Contos como A música de Erich Zann e O modelo de Pickman, por exemplo, são trabalhos em que Lovecraft expõe seu gosto apurado pela arte clássica e busca pela erudição. Eles foram escritos após o rompimento com Sonia, quando o escritor voltou a Providence e viveu um período de grande efervescência criativa, publicando ininterruptamente seus contos na Weird Tales, período também em que sua já citada mitologia foi criada e expandida.
Em 1936, porém, no auge de sua capacidade criativa, o escritor passou a sofrer pequenos problemas de saúde, um atrás do outro, até que foi diagnosticado com um câncer terminal no início de 1937 e morreu poucos dias depois, no dia 15 de março.
Após seu falecimento, dois de seus amigos e correspondentes, August Derleth e Donald Wandrei, fundaram a editora Arkham House, a fim de preservar a obra e as ideias contidas nos mitos de Cthulhu. A editora, que permanece em funcionamento, não só publicou Lovecraft, mas abriu espaço para o gênero de horror. Foi graças à iniciativa de Derleth e Wandrei que nomes como Stephen King e Neil Gaiman descobriram o escritor norte-americano.
O legado de Lovecraft é um catálogo de possibilidades estéticas aberto à contribuição de autores que se aventuraram a conhecê-lo. Não seria injusto dizer, nesse contexto, que cada um que utiliza os mitos de Chutulhu, como base para seu trabalho, deixa lá uma marca. O próprio Robert E. Howard chegou a contribuir com a expansão da mitologia antes de morrer, em 1936. Nunca lançada no Brasil, a antologia de contos Nameless Cults reúne todos os contos escritos por Howard dentro do universo lovecraftiano.
FERNANDO ATHAYDE, jornalista e músico.