Livro-imagem: Nem tudo que se lê nos livros são letras
Em 'A trilogia da margem', Suzy Lee comenta os “erros” intencionais que comete em suas obras, criando “ruídos” para estimular a imaginação dos pequenos leitores
01 de Dezembro de 2012
Em 'Sombra', a autora intensifica a movimento das ilustrações de uma página para a outra
Imagem Reprodução
Há uma regra editorial implícita que desaconselha ilustrações no centro das páginas duplas, para evitar perturbações na leitura. No entanto, a artista coreana Suzy Lee questiona esse impedimento no livro A trilogia da margem, propondo a seguinte reflexão: e se a linha visível da encadernação não fosse censurada, mas, sim, aceita? Esse é o ponto de partida do ensaio da autora que expõe o seu processo criativo e descortina detalhes de sua obra de forma pedagógica, com o intuito de sensibilizar o público para as nuances e as potencialidades do livro-imagem, gênero ao qual se dedica. O episódio com um dono de livraria do Reino Unido dá uma boa pista da qualidade de “confusão” proposta pela desenhista. Após receber os exemplares de Onda, ele lhe mandou a seguinte mensagem: “Estamos um pouco confusos com as páginas duplas, parecem faltar algumas partes da criança e das gaivotas. É assim mesmo? (...) Será que não entendemos o sentido ou o impressor se equivocou? Foi um erro de impressão?”.
No Brasil, a ilustradora ficou conhecida, justamente, pelas publicações Espelho (2003), Onda (2008) e Sombra (2010), que formam o conjunto analisado em A trilogia da margem, cujo viés é teórico. Nela, descobre-se que o seu projeto estético começou, de forma mais consciente, num trabalho que antecede os livros citados. Quando criou as imagens para uma edição de Alice no país das maravilhas (2002), Suzy Lee usou o conceito de “sonho dentro do sonho”, explorando camadas de sentidos nos seus desenhos. Essa experiência trouxe o repertório necessário para a idealização de Espelho, que foi desenvolvido em apenas uma semana.
Em A trilogia da margem, as etapas da sua carreira são apresentadas de forma crítica e lúdica, sem tendência acadêmica ou cacoetes técnicos. Fica perceptível a preocupação em sensibilizar os educadores, sejam os professores ou os próprios pais, para uma mediação eficaz entre o livro-imagem e as crianças. Aliás, segundo a coreana, são elas que tornam o gênero possível. Com passagens didáticas, Suzy Lee estimula o olhar cuidadoso daqueles que se propuserem a experimentar o tipo de narrativa que constrói, na qual o objeto livro é pensado desde a capa, as guardas iniciais e a folha de rosto. Os “erros” intencionais, apontados pelo proprietário da livraria britânica, também são elementos que demandam atenção, porque criam “ruídos” que não se pretendem gratuitos. As páginas vazias, por exemplo, são usadas como um conceito da artista e surgem para dar efeito dramático, seja no desaparecimento da personagem, seja no momento em que ela apaga a luz.
Nas obras da trilogia, nota-se que a dobra física do papel distingue fantasia e realidade. Imagem: Reprodução
Nas obras da trilogia, percebe-se que a dobra física central cumpre um papel de divisor entre fantasia e realidade, e que o diálogo estabelecido entre esses dois lados foi se tornando mais complexo a cada lançamento. Se Espelho brinca com a impossibilidade de se identificar o que é real e o que é reflexo, tendo apenas uma personagem para sustentar a dinâmica do jogo, Onda acrescenta as gaivotas que acompanham a protagonista no enfrentamento do desconhecido, que está do outro lado da fronteira – da divisória –, além de anteciparem nas suas reações alguns desdobramentos da narrativa. Sombra, por sua vez, intensifica o movimento das ilustrações de uma página para outra, no entrelace entre os objetos e as imagens projetadas por eles, transmutadas em criaturas.
SENSORIAL
Alinhada a uma maneira específica de elaboração de histórias, a coreana defende a motivação criativa que vem da forma estrutural do próprio livro e não somente de temas literários. Seu interesse está mais atrelado à experiência imagético-sensorial, por isso ela chega a confessar: “Em alguns momentos, penso que contar histórias pode ser uma desculpa para espalhar imagens”. Mas, apesar do zelo da autora, o gênero ainda é valorizado por um público restrito, sendo o próprio mercado editorial, muitas vezes, insensível à sua proposta. Um exemplo peculiar dessa incompreensão foi vivenciado por Suzy Lee na Feira do Livro Infantil da Bolonha, quando ela apresentou um protótipo de livro-imagem e certo editor “interessado” declarou: “Os pais não comprarão, se não houver palavras. Por que você não acrescenta algumas?”.
Embora o comentário revele o pragmatismo do profissional, há um sentido na sua preocupação, se estiver em questão a popularidade do lançamento e seu retorno financeiro. Os livros sem texto verbal ainda são vistos como produtos menores por muitos adultos, mas podem ser os detonadores da imaginação para os pequenos. No seu ensaio, a coreana evidencia peculiaridades na fruição de diferentes gerações. Os leitores mais velhos – mesmo aqueles que se interessam pelo gênero – tendem a “apreciar a estética e a estrutura dos livros ilustrados”, enquanto as crianças não estão focadas nessas formalidades. Para elas, interessa transitar entre ilusão e realidade, o que não significa incapacidade de distingui-las. “As crianças não confundem realidade com fantasia. Com certeza, elas sabem o que não é real, mas brincam de faz de conta com muita seriedade”, avalia Suzy Lee.
Experiências em sala de aula confirmam a percepção da ilustradora. Como ficamos sabendo em A trilogia da margem, quando ela recupera depoimentos de professores que debateram as suas obras e pediram, por exemplo, para que os estudantes criassem suas próprias histórias a partir do que apreendiam da narrativa visual. O livro ainda traz recriações dos trabalhos da coreana, remontados com o traço ainda pouco coordenado dos seus apreciadores, os pequenos leitores.
GIANNI PAULA DE MELO, repórter da Continente Online.