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José Rufino: “Escrevendo, posso qualquer coisa”

Artista plástico estreia na literatura com 'Afagos', reunião de mais de 100 minicontos, produzidos como poemas em prosa

TEXTO Luciana Veras

01 de Março de 2015

José Rufino

José Rufino

Foto Adriano Franco/Divulgação

José Augusto Costa de Almeida completa 50 anos em 2015. Formado em Geologia pela Universidade Federal de Pernambuco, com doutorado em Paleontologia, o paraibano desafia convenções desde que se entende por gente. Filho único, inventava realidades paralelas e devorava livros com rapidez e interesse – tanto que, ainda criança, ganhou da mãe um bolo de aniversário em homenagem a Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Décadas depois, afastou-se do pétreo campo de trabalho para incursionar pela arte. Para tanto, tomou emprestado o nome do avô paterno, um coronel e senhor de engenho de quem herdou a paixão por “literatura, dicionários e lexicografia” e a ligação com palavras “estranhas e complexas”, que hoje define “quase como uma patologia familiar”. Um dos mais representativos artistas plásticos do Nordeste, José Rufino prepara uma exposição individual para abril e dribla os enquadramentos corriqueiros do mundo contemporâneo ao assumir a persona de escritor e lançar, neste mês, o volume de contos Afagos, pela Cosac Naify.

O verbete contos não é de todo adequado, na verdade, pois até aqui Rufino fugiu de quaisquer expectativas. Ele adotou o formato de pequeníssimas narrativas condensadas em 300, 400 ou 500 caracteres – ou seja, menos do que três ou quatro posts no Twitter. “Afagos reúne 102 textos que podem ser descritos como microcontos, embora muitos sejam verdadeiros poemas em prosa, nos quais está presente o mesmo olhar do artista José Rufino que, vendo os fatos para além da circunscrita banalidade do dia a dia, oferece-nos novas possibilidades de compreensão da realidade”, escreve Luiz Ruffato, na orelha do livro. “Sempre desconfiei que ia terminar escrevendo”, confessa o artista e professor paraibano à Continente.

Tal certeza vinha do ambiente literário em que fora criado, com escritores, críticos e literatos tanto do lado da mãe, Marlene, como do pai, Antônio Augusto (que ainda foi secretário do Partido Comunista e um dos fundadores das Ligas Camponesas). “Desde criança, adorava charadas com palavras e sempre escrevia fragmentos. Com o passar do tempo, nutri um problema para escrever por conta exatamente do contexto familiar. A pressão para escrever bem era tão grande, que criei uma noção deformada de que escritores tinham um estilo prévio. Até que, pouco tempo atrás, parei para pensar que, assim como os artistas visuais, os escritores evoluem de um jeito e vão mudando –não é necessário começar com um texto maduro”, sintetiza José Rufino.

Afagos surge como o desfecho de uma narrativa iniciada em 2008, quando ele, a convite da revista pernambucana de arte Tatuí, rascunhou uma participação em um número sobre o passado. “Comecei a escrever, achei meio ruim, como se fossem palavras de um crítico a respeito do meu trabalho, e então decidi fazer em primeira pessoa, como uma pequena ficção”, lembra. Ele, que sempre usara o texto de modo pontual em seu trabalho, viu-se cooptado por aquela nova forma de expressão. Nascia ali o projeto de Desviver, em que José Rufino, o neto, revisita a história de José Rufino, o avô, no que ele chama de “transgressão e confusão do tempo”. O romance, que vem sendo lapidado desde então, já se avoluma em “mais de 500 páginas” na sua odisseia pela “minha existência dentro da existência do meu avô, uma espécie de fluxo de consciência, um solilóquio que viaja no tempo”.

Tomado, pois, pela angústia dessa escrita “convulsiva”, o autor passou a se divertir com pequenas brincadeiras extraídas de work in progress em Desviver. Uma passagem o levava a imaginar outros personagens e possíveis desfechos, porém todos amarrados em rigorosas condições de exiguidade de espaço e linguagem. “Afagos é um respiro desse texto, é o oposto de Desviver com sua contração e economia. Mais calejado com o texto do romance, resolvi me submeter a uma provação inclusive estética, com formatos que variam. Me dou o direito de me desafiar e me permito ir a todas as situações. Por exemplo, escrevi muito como um jogo que adorava fazer desde criança, o de me submeter a determinada regra para me tomar o espaço da solidão. Se estava esperando numa fila de banco, sozinho no hotel ou no balcão do aeroporto, podia me dar uma ordem e escrever sobre o casal que via na minha frente. Ou de produzir um conto em cinco minutos. Me via como um cantador, a fazer uma embolada, agora com muita exigência para a pontuação sair perfeita e a respiração ficar certa na hora da leitura”, esmiúça o escritor e artista paraibano.

A argamassa para tudo, José Rufino prossegue, ele carrega desde os anos 1980, quando se reconheceu como artista: “Os microcontos falam de ciúmes, amor, solidão, violência, ausência, ou seja, as experiências da condição humana, que são temas que sempre trato nas minhas obras”. A concisão chega ao extremo em pérolas como Ataque, composto por apenas duas frases: “O corte era fundo, curto, mas não doía nem sangrava. Somente sua alma vazava em decepção”. “De fato, há algumas pancadas violentas e contos que tendem ao afago, e ainda há vários que, de alguma maneira, fazem o vínculo com a minha formação pessoal, como quando uma criança entra numa conversa de adultos e de repente solta uma palavra que silencia a todos”, testemunha Rufino.

Sua trajetória como artista e escritor seria outra, se ele não houvesse cruzado a fronteira da Paraíba. “O Recife foi fundamental na minha vida. Foi aqui, na Livro 7, na Síntese, na Imperatriz e no Sebo Brandão que montei minha biblioteca de poesia, com João Cabral de Mello Neto, Manuel Bandeira, Octavio Paz e Ezra Pound. Quando li O cão sem plumas, de João Cabral, fiquei três dias com febre. Voltei à Livro 7 e comprei todos os exemplares. Ainda nos anos 1980, tinha uma paixão pelos poetas concretistas, como Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, e também admirava o trabalho de artistas como Montez Magno, Daniel Santiago e Paulo Bruscky. Tudo isso veio a formar o leito por onde eu ia seguir”, recorda.

Emile Zola, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Enrique Molina, Raduan Nassar, Gabriel Garcia Marques, Thomas Pynchon, Marcel Proust, Pablo Neruda “e os russos todos por causa da minha mãe” são eleitos por ele como influências literárias. Contudo, mais do que listar as obras que o arrebataram, o que José Rufino mais gosta de fazer na iminência da sua estreia literária é saborear a infinidade de janelas por onde adentrar: “O artista plástico que sou tem uma única voz. Não sou popular, não sou naïf. Agora, escrevendo, posso ser qualquer coisa”. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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