FOTO RICARDO MOURA
01 de Julho de 2011
Os atores optaram por manter a simplicidade, investindo na poética, e não em efeitos especiais
Foto Ricardo Moura
Numa época em que as diferenças, na infância, geram todo tipo de violência e reações de histeria coletiva, o teatro para crianças vê-se obrigado a debater o assunto. Abandonar os clichês que subestimam o potencial reflexivo dos pequenos, e assumir a cena como espaço do lúdico, mas também do pensamento, é uma decisão – mais do que nunca – política que muitos grupos no Brasil vêm enfrentando com criatividade e ousadia.
Em 1937, muitas décadas antes da noção de bullying emergir com a força de agora, Graciliano Ramos escreveu o conto A terra dos meninos pelados, em que narra as aventuras de Raimundo, garoto careca que tem um olho azul e outro preto, e é considerado “estranho” no mundo em que vive, permanecendo isolado das outras crianças e recebendo o apelido jocoso de “Raimundo Pelado”. Para escapar à segregação, o menino inventa um lugar em que todas as crianças são como ele e no qual não sofrerá preconceito. Essa primeira e única incursão do autor pelo universo infantil está intimamente ligada à sua experiência carcerária, em 1936, sob acusação de atividade comunista. A terra dos meninos pelados é um tratado de integração humana e contra toda forma de perseguição e sectarismo.
O grupo pernambucano Arte em Foco encenou, em 2002, uma versão da história, arrebatando oito dos 10 prêmios concedidos pelo festival Janeiro de Grandes Espetáculos na categoria Teatro para Infância. Além disso, a peça viajou para outros festivais, teve excelente aceitação do público e da crítica, e realizou várias temporadas, sendo a última em 2005. A adaptação teatral de A terra dos meninos pelados representou um avanço no panorama cênico para crianças em Pernambuco, não só do ponto de vista dos conteúdos abordados, mas principalmente na forma de apresentá-los. Com direção do jovem Samuel Santos, a montagem chamou a atenção pela simplicidade e economia visuais, pelo forte investimento nos recursos artesanais do teatro, pela jovialidade e talento do grupo de atores iniciantes e pela trilha sonora, executada ao vivo, cheia de lirismo.
Quase uma década depois daquela montagem, o Arte em Foco reencena o texto, revelando a premência da abordagem. “Quando comecei a trabalhar na nova versão, pensei: não posso deixar de fora o bullying. Na primeira versão, Raimundo sofria o preconceito, sem maiores danos físicos. Nesta encenação, explicitei mais a violência, ele é arrastado, agredido pelos colegas, por ser diferente”, comenta Samuel Santos. O diretor, que se tornou pai desde que a primeira versão estreou, revela a mudança de olhar promovida pela presença da filha de sete anos em sua vida e a necessidade, ainda maior, de discutir a questão: “Minha filha é uma das vítimas da violência na escola. Então, meu desejo de trabalhar, através do teatro, as diferenças, a aceitação de si e do outro, só aumentou”.
Com o apoio do Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, a equipe realiza, este mês, o projeto Geografia poética, uma referência direta à viagem onírica de “Raimundo Pelado”. Na fábula, o garoto dorme e, no sonho, desembarca em Tatipirun, terra do rio Sete Cabeças, de outros meninos pelados e de olhos azuis e pretos, lugar onde não chove, não anoitece, automóveis não atropelam pedestres e nenhuma planta tem espinhos, para não agredir as pessoas. Já na itinerância poética que realiza, o espetáculo pernambucano visita Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e Alagoas. Em cada praça, promove intercâmbio com um grupo de teatro local: Clowns de Shakespeare (RN), Piollin (PB) e Imbuaça (SE). Em Alagoas, A terra dos meninos pelados será apresentada em Palmeira dos Índios, cidade onde Graciliano foi prefeito, e Quebrangulo, sua terra natal.
“Não temos certeza de que a casa onde ele nasceu ainda está de pé, por conta das chuvas que arrasaram várias cidades no ano passado; mas, lá, pretendemos nos apresentar na rua. Queremos prestar essa homenagem, levar de volta sua obra, sua poética, o Graciliano menino, o moleque. É um retorno simbólico, porque Raimundo, no texto, vive falando que precisa estudar a lição de Geografia, mas não se trata só de uma geografia física, mas também interior, do imaginário”, esclarece o diretor.
A viagem é um retorno à infância afetiva e artística do grupo, que permanece quase integralmente o mesmo. Na primeira montagem, a maioria acabava de sair da adolescência, e o espetáculo se tornou a maior aventura de suas vidas. Samuel Lyra, que vive, na atual versão, o protagonista, tinha somente 13 anos quando se tornou músico de A terra dos meninos pelados. Agora, aos 21, fala da responsabilidade de interpretar Raimundo: “Na época, eu não entendia muito, mas ficava preso ao encanto do espetáculo, chorava sempre. Hoje, entendo. Sinto-me agraciado com o convite, e muito cobrado. Tenho de atuar e tocar flauta transversa, uma sincronia difícil entre cena e música, como se meu cérebro tivesse que se dividir em dois”.
Já Amaro Vieira, um dos responsáveis pela rearticulação do grupo e pelo retorno do espetáculo, conta: “As pessoas sempre cobravam a volta da montagem e nós achávamos que o ciclo ainda não havia se completado. Mas se, antes, tudo era instinto, agora, temos técnica. Podemos fazer um aprofundamento, sem perder a simplicidade necessária à comunicação com a criança, sem apelar para a grandiosidade. Lição que aprendemos com Marco Camarotti e que ficou para sempre”.
Camarotti, falecido professor de Artes Cênicas da UFPE, que escreveu o livro A linguagem no teatro infantil, é uma referência nos estudos do teatro para crianças no Brasil e, segundo Samuel Santos, permanece uma importante influência na realização do trabalho. “Quando viu o espetáculo, ele nos chamou para um diálogo e nos trouxe um aprendizado eterno, a atenção à criança. Na época, o teatro que se fazia para os pequenos tinha pouco conteúdo, não tinha poesia, parecia um bolo de noiva. Foi necessário o espetáculo acontecer, para recuperar o respeito a esse público”, reflete.
Com novos arranjos na trilha sonora, um dos pontos altos do trabalho, executada ao vivo, misturando ritmos tradicionais como coco, maracatu, frevo e forró; mudanças na direção de arte e no desenho da cena, A terra dos meninos pelados só retorna ao Recife ao final de sua viagem pelo Nordeste, realizando temporada em setembro, no Teatro Apolo.
RODRIGO DOURADO, jornalista e doutorando em Comunicação Social.
RICARDO MOURA, fotógrafo, estagiário da Continente.