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Gilvan Barreto: Sob o sol de Camus

Na exposição 'Suturas', Gilvan Barreto apresenta série de 25 fotografias manipuladas em que toma como ponto de partida a memória de 'Estrangeiro'

TEXTO Marina Moura

01 de Outubro de 2015

Imagem Gilvan Barreto

A banda de rock britânica The Cure lançou, em 1978, o single Killing an arab, numa referência ao personagem Mersault, do livro O estrangeiro, escrito pelo franco-argelino Albert Camus. Ainda adolescente, o pernambucano Gilvan Barreto, que viria a ser fotógrafo, escutou a música e, em seguida, resolveu ler a obra. Ele possivelmente não sabia que, mais de 30 anos depois, a produção de Camus, e sobretudo O estrangeiro, estariam no centro de suas referências fundamentais, inclusive de sua mostra mais recente, Suturas, em exposição na galeria Amparo 60, neste mês de outubro.

Na mostra, há cerca de 25 fotografias híbridas (desenhos e fotocolagens), entre inéditas e outras presentes na trilogia de livros lançados por Gilvan: Moscouzinho (2012), O livro do Sol (2013) eSobremarinhos (2015). A escolha das imagens, no que possuem de semelhanças formais e conceituais, foi feita pelo curador paulistano Eder Chiodetto. Ele observa o caráter experimental deSuturas, algo a ser celebrado porque se insere nos contornos escorregadios da fotografia contemporânea, justamente por dialogar com outras linguagens, como a literatura e a escultura. Nesta exposição, aliás, há uma escultura inédita — um chumbo de pescaria, com aproximadamente 12 kg, fincado na parede. O fotógrafo, radicado há nove anos no Rio de Janeiro, já havia se utilizado de imagens de chumbinhos, relacionando-os ao peso de sentir culpa, em Sobremarinhos.

Lançado em 1942, o mais famoso livro de Camus acompanha a trajetória de Mersault, que se comporta sob os signos da distração, aparente frieza e do absurdo. Ao saber da morte da mãe, o personagem vai ao cinema. No enterro, não dá mostras de sentir qualquer emoção (“Na nossa sociedade, todo homem que não chorar no enterro da mãe corre o risco de ser condenado à morte”, provoca o narrador). Depois, ele vai à praia, toma banho de mar e mata um árabe. Levado a julgamento e questionado sobre o motivo do assassinato, Mersault argumenta que foi culpa do “Sol que não deixa sombras”.

Laços afetivos, culpa, Sol, ciclos de vida e morte, mar, vestígios, fraturas — eis alguns elementos presentes no livro de Camus que são ressignificados como uma narrativa nas fotografias de Gilvan Barreto, para quem a produção de imagens é comparável à escrita, ou melhor, “é uma escrita. Como autor, preciso criar um vocabulário próprio”, afirma. Assim, a mostra toma uma direção ficcionalizante e é possível observar essa influência em trechos de O estrangeiro e Diário de viagem (registro feito por Camus em viagem ao Brasil, no ano de 1948), utilizados em colagens e sobreposições do artista.

A figura paterna é outra temática forte na poética do fotógrafo e, em Suturas, está presente em uma imagem na qual o pai flutua ao lado de uma criança e em uma série de cinco desenhos representando o seu funeral. Chiodetto observa que um dos motivos para o tema ser caro a Gilvan é porque ele “perde o pai quando se torna pai” e precisa lidar com sentimentos contraditórios, os quais são aproveitados em sua produção como modo de agenciar a memória e o afeto.

Outras referências apontadas por Chiodetto são o diálogo com o Surrealismo, o inconsciente e a aproximação da linguagem do fotógrafo norte-americano Man Ray, um dos mais importantes do século 20 e considerado precursor nas pesquisas de artes visuais abstratas. Uma das técnicas utilizadas por Ray, a solarização (inversão parcial dos tons da fotografia), tem seu efeito de foto metalizada evidenciado em muitas das imagens de Gilvan na mostra Suturas.

O entendimento de que a fotografia é uma maneira própria de existir das coisas e de que se constrói e sustenta-se como forma de representação é fundamental para o processo de Gilvan Barreto. “Não busco lá fora os elementos visuais para minhas imagens, eu as invento”, declara. Ao reinventar pedaços de seu mundo de memórias, as imagens de Gilvan nos representam — enquanto detentores de recordações pessoais diferentes das dele e, no entanto, feitas da mesma substância — muito profundamente. 

MARINA MOURA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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