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Gero Camilo: Um ator em busca da potência artística

Cearense leva à frente intercâmbio artístico e projetos cênicos em Portugal, ao mesmo tempo em que interpreta músicas do conterrâneo Belchior

TEXTO Luciana Veras

01 de Setembro de 2015

Gero Camilo

Gero Camilo

Foto Rita Araújo/Divulgação

O cearense Paulo Rogério da Silva, 44 anos, queria ser psicólogo, quando adolescente. Historiador e padre foram profissões que ele chegou a considerar – a breve inclinação religiosa o levou a estudar em um seminário. Ainda na juventude, um belo dia resolveu mudar e, inspirado nos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa, criou uma corruptela de um dos seus nomes próprios. Aos 16 anos, fugiu de casa, em Fortaleza, e se mudou para São Paulo. Voltou dois verões depois. Aos 23, aprovado no vestibular da Escola de Artes Dramáticas da USP, saiu do Ceará em definitivo. A missão: enveredar pela arte, caminho do qual, aliás, Gero Camilo nunca mais saiu.

Ator, produtor, dramaturgo, diretor, cantor e compositor, ele é múltiplo por desejo próprio. “Entendo o artista como uma potência. Fazer esse tour de transitar por todas as áreas é, para mim, seguir em busca dessa potência. Não se trata de talento, e, sim, de mecanismos de instrumentalização de possibilidades artísticas. Fazer um pouco de tudo é fundamental para a experiência, e não falo do acúmulo no decorrer da vida, mas do ato, do presente, do instante. A abertura de caminhos e a compreensão são fundamentais na arte”, sublinha Gero Camilo em entrevista por telefone à Continente, transcorrida num fim de tarde pouco antes de ele embarcar para Lisboa.

Em Portugal, ele se prepara para dirigir uma versão de Correram nus empoeirados, texto seu a ser apresentado na segunda edição do Cena Contemporânea de Matosinhos em Português, festival devotado ao teatro lusófono. “É a história de dois artistas populares que saem mambembando pela vida em busca de sobrevivência e arte – um recorte sobre fazer números artísticos pelos lugares por onde passam, sobre passar o chapéu, sobre a poesia dos artistas não só no esplendor no palco, mas por trás das coxias, no suor, na labuta”, conta o ator e diretor. O espetáculo será encenado em novembro, numa parceria criativa entre Gero e a portuguesa Luísa Pinto, diretora artística da mostra de artes performativas. Em 2014, o mesmo evento apresentou ao público d’além-mar Aldeotas, peça também concebida e dirigida pelo ator cearense.

Tal expansão para o exterior vem ocorrendo em concomitância ao resgate que ele empreendeu de um peculiar artista do cancioneiro popular brasileiro. Alucinação é o título do quarto disco do cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes e também do show que seu conterrâneo estreou em maio, em Fortaleza. “A vontade de tocar a obra de Belchior veio antes do sumiço dele, que, inclusive, penso ser um sumiço da mídia, nunca da sua poética. Um poeta jamais foge da sua poesia”, diz Gero. “Minhas primeiras referências musicais são de Belchior, Fagner e Ednardo, que tocavam nas rádios universitárias do Ceará. Através delas, qualquer um tinha chance de conhecer os artistas da sua terra. Desde sempre, tenho uma enorme admiração poética e artística por ele. Fui a vários shows, mas não o conheço. Não tenho o menor acesso a ele que não seja pela música, que me faz passear pela adolescência em Fortaleza”, complementa.

Microfone em punho em Alucinação, Gero Camilo entoa A palo secoComo nossos paisApenas um rapaz latino-americano e as outras sete faixas do álbum, com óbvias distinções com relação ao intérprete original. “Belchior é um poeta e é isso que me interessa na obra dele. Quando vou ao palco, estou em busca de uma aproximação poética, não relacionada ao ídolo em si, mas à poesia”, sintetiza. Ele, entretanto, trabalha para revestir aqueles versos de um brilho próprio, como se alinhavados em uma colcha de lantejoulas. Inocula as canções com seu DNA inquieto e libertário.

Essa conduta, aliás, é típica em seu processo de imersão. Foi assim ao encarnar o pintor holandês Vincent van Gogh, na peça A casa amarela, ou ao participar de filmes como Bicho de sete cabeças (2001), Cidade de Deus (2002), Narradores de Javé (2003) ou Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011). A entrega se dá no mesmo nível em suas incursões literárias ou televisivas – Gero foi visto nas séries Hoje é dia de Maria (2005), Som & fúria (2009) Gabriela (2012) e Felizes para sempre (2015) e é autor das publicações A casa amarela (2012), A macaúba da terra (2012) e Aldeotas(2013).

A mesma desenvoltura com que se reparte entre tantas searas de concepção artística (e com que driblou o trânsito paulistano para atender a ligação da Continente) é ainda traduzida em Megatamainho (2014) e Canções de invento (2008), seus dois discos. Sim, ele também singrou os mares da criação musical. O álbum mais recente, inclusive, teve produção do pernambucano Bactéria e composições assinadas com Otto, Vanessa da Matta e Luiz Caldas.

Mas, ainda assim, não busca fazer distinções entre os mergulhos que dá. Apenas procura prosseguir na aposta cotidiana no fascínio da arte: “Minha atitude é de ir pra vida tendo a criação como possibilidade. Sou artista, quero diversidade, quero ter a raiz do Ceará, que amo demais, e olhar para cima e ver um arco-íris de diversidade no céu de São Paulo, pois também me sinto paulistano. Meu lugar é meu canto”.

Paulo Rogério se tornou Gero Camilo também para homenagear Valdegrácio Camilo da Silva, seu pai. Como sua avó teve 20 filhos, ele possui dezenas de primos – alguns deles desenhistas, guitarristas, baixistas – e quatro irmãos que, por sua vez, optaram por carreiras mais lineares. A cota familiar de experimentação, contudo, parece estar singularmente representada nesse cidadão do mundo sem medo de abraçar desafios ou acolher os encontros. “Ser artista é estar predisposto a qualquer experiência, é estar de cara aberta a todas as possibilidades”, desvenda. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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