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Foi então que o bule disse à chaleira...

O Festival Internacional de Teatro de Objetos apresenta 60 espetáculos, em que os atores são utensílios do cotidiano redimensionados

TEXTO Danielle Romani

01 de Novembro de 2011

Em 'Volta ao mundo', a companhia espanhola Fernan Cardama utiliza bonecos antigos para empreender um giro na Terra em 43 minutos e 55 segundos

Foto Ralph Pho /Divulgação



Em 1917, o pintor e escultor Marcel Duchamp
inscreveu a obra A fonte – tratava-se de um objet trouvé, um mero urinol industrial, desses que podem ser vistos em qualquer banheiro – em um concurso de artes plásticas nos Estados Unidos. Desde então, a relação do mundo com os objetos nunca mais foi a mesma. Precursor da arte conceitual, o francês abriu espaço para que outros artistas experimentais, a exemplo de Andy Warhol, que imortalizaria pacotes de sopa Campbell´s nos seus quadros, pudessem se utilizar dos ready-made para expressar-se artisticamente. Duchamp deu o primeiro passo, para que o mundo enxergasse os utensílios industriais de outra forma, percebendo que, por mais insignificantes que possam nos parecer, eles podem nos remeter a interpretações, significações e, se olhados para além de sua banalidade, podem até comover e surpreender.

Quase um século depois da polêmica causada pelo objet trouvé de Duchamp, os utensílios pré-fabricados, ou não, estão definitivamente incorporados às manifestações artísticas. A prova disso é a realização do Festival Internacional de Teatro de Objetos (Fito), que ocorrerá no Recife entre os dias 11 e 13 de novembro, reunindo grupos de sete países, que farão mais de 60 apresentações para quem for visitar as cinco salas montadas pelo cenógrafo Osvaldo Gabriele, no Marco Zero, no Bairro do Recife.

Promovido pelo Serviço Social da Indústria (Sesi), com curadoria da publicitária Lina Rosa, mentora e idealizadora do projeto, o Festival Internacional de Teatro de Objetos é algo inédito no Nordeste, e novo no Brasil, ainda que já tenha sido visto por 115 mil pessoas em edições realizadas em Porto Alegre, Brasília, Florianópolis, Campo Grande, Manaus e Belo Horizonte.

PERFORMANCES
Durante a temporada recifense, 13 grupos de três continentes vão mostrar performances curtas, entre 15 e 50 minutos, com situações inusitadas, provocando o olhar do público para o cotidiano de modo diferente. Elas estão voltadas para faixas etárias distintas: livre, a partir de 12 anos, e adulta, conforme a carga dramática das encenações.

Nas apresentações, uma xícara de louça comum se transforma em Cinderela, e o seu príncipe é um bule. Rodas de bicicleta e seus guidons, presos a uma banqueta de bar, são dançarinas elegantemente cortejadas por sóbrios senhores. Panelas, frigideiras, caçarolas e chaleiras dialogam, brigam, juntam-se, formando uma orquestra. Saca-rolhas são bailarinas graciosas, disponíveis a serem animadas pelo público; leques adquirem o traquejo de pavões.

“O olhar do espectador é instigado a ver de modo impensado. Nessa perspectiva, a afirmação de que existem muitos objetos num só objeto, do dramaturgo e diretor teatral alemão Bertold Brecht, é relevante porque estimula o público a imaginar, a criar suas próprias narrativas, a ser o protagonista dos seus sonhos e das suas fantasias. O espectador é convidado a ver além do aparente, a olhar mais profundamente e perceber o movimento, a transformação, o ‘vir a ser’ contido em cada objeto e, quem sabe?, no modo de ser das pessoas”, explica o professor de teatro, catarinense, Valmor Niní Beltrame.


Os alegres utensílios de cozinha da Cie du Petit Monde executam originais melodias. Foto: La Compagnie du Petit Monde/Divulgação

Entre as companhias reunidas no festival, uma merece atenção especial, pois nela está a precursora do gênero no mundo, a francesa Katy Deville, responsável pelo Théâtre de Cuisine. O termo teatro de objetos foi pronunciado pela primeira vez por ela, na década de 1980. No Recife, Katy apresentará o espetáculo 20 minutos sob o mar, destinado exclusivamente a adultos, e descrito como dotado de uma densa carga emocional, cuja história se desenvolve dentro de um aquário, ou melhor, no fundo do oceano, num mundo de sonhos e pesadelos, passeando entre o nonsense e o bom humor, entre a delicadeza e o terror.

Entusiasta desse tipo de manifestação, Lina Rosa tenta defini-lo. “O teatro de objetos nem é boneco, nem é contação de história. Ele pode estar, ou não, dentro de um guarda-chuva de formas animadas. Acho que, realmente, o que o diferencia é a utilização da interpretação dramática que pode ter, sendo capaz de uma carga muito intensa. Em Paris, vi um espetáculo todo pautado em torneiras, baseado em O avarento, de Molière, que tinha uma força fora do normal”, afirma a curadora, que é também responsável pela curadoria do Festival de Bonecos do Sesi, que já se encontra no seu oitavo ano.

Diferentemente do que se encontrará na edição recifense do Fito, em que o público contará com diversas montagens para crianças e adolescentes, quando foram iniciados, há algumas décadas, os espetáculos de objetos eram essencialmente adultos. “Todos tinham invólucro de crítica, denúncia, humor sarcástico. Eram profundos, pesados. Agora, com o surgimento de novas companhias, se diversificaram. Mas, certamente, o que os diferencia do teatro de bonecos é que trazem maior carga emocional, mexem com o inconsciente coletivo, exigem um fitar intenso e o ingresso na mágica dos objetos. Estimulam o simbólico, sendo miméticos”, explica Lina.

ELENCO
A montagem recifense vem cercada de ludismo, para fisgar o público ainda não familiarizado com o gênero. A curadoria afirma que o ambiente montado no Marco Zero terá cinco salas para espetáculos nacionais e internacionais, sendo três delas com capacidade para receber até 200 pessoas, e duas, com menor capacidade. Quatro minissalas serão usadas para performances curtas, realizadas por atores para pequenos grupos, e serão batizadas de Fito Mostra Viva. Após a apresentação, o encenador trará ao público fundamentos básicos do teatro de animação e objetos, convidando os espectadores a participarem da cena.

Ainda na proposta interativa, a Foto Fito se constituirá em um espaço cenográfico, com várias instalações. Numa delas, estarão cabideiros, que servirão como parceiros de dança para os participantes. Os “casais” de dançarinos – pessoas e objetos – serão fotografados. Em outra, será possível ver bailarinas em formato de saca-rolhas gigantes que rodopiam manipulados por cordas e, numa terceira, móbiles feitos com relógios e cadeiras, numa referência ao tempo.

O público verá o trabalho das companhias brasileiras Cia Gente Falante, Teatro das Coisas, XPTO, Mosaico Cultural, e poderá conferir a performance do percursionista Naná Vasconcelos no espetáculo Pinipan, em que ele toca um instrumento formado por pinicos, panelas, bacias, caçarolas, caldeirões, bules e colheres. O cantor e compositor Tom Zé também se apresentará no festival, mostrando canções com arranjos e orquestrações em liquidificadores, rádios, máquinas de escrever, enceradeiras, gravadores, teclados e garrafas, unindo o pop à música experimental.

No âmbito internacional, estarão presentes os espanhóis Rocamora e La Chana Teatro, o holandês Tamtam Objectetheater, o argentino Fernán Cardama, o israelense Cia Meital Raz, o belga Gare Centrale, o italiano La Voce Delle Cose, e os franceses Théâtre de Cuisine e La Cie du Petit Monde.

Animada com a receptividade que o Fito recebeu em outras capitais, Lina Rosa acredita que a edição recifense causará impacto. “A experiência é muito ousada. E o que mais me alegra: gratuita. É possível que, depois de assistir a um espetáculo de objetos, o espectador atribua novos significados a uma caixa de ferramentas e aos banais utensílios de cozinha” 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.

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