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Estudo: Comida com afeto

Resultado da dissertação de mestrado, livro de Clarissa Galvão foca as relações que se estabelecem pelo compartilhamento à mesa

TEXTO Luciana Veras

01 de Julho de 2015

Clarissa Galvão

Clarissa Galvão

Foto Andrea Rego Barros/Divulgação

Quando Clarissa Galvão terminou a graduação em Ciências Sociais na UFPE, ingressou no mestrado no mesmo departamento com a ideia de aprofundar os estudos na área de gênero e criminalidade. Como também cursava Direito na Unicap, parecia que as pesquisas sobre morte de jovens em Pernambuco ganhariam o reforço de uma estudante aplicada. Parecia. Numa guinada, ela trocou as pesquisas anteriores pela gastronomia e lançou um olhar sociológico a práticas de consumo, partilha e convívio ancoradas na comida. O resultado é Dize-me o que comes e te direi quem és (Editora Appris), que agora chega às livrarias.

O livro, resultado da dissertação de mestrado defendida em 2011, tem prefácio da jornalista Renata do Amaral e o título emprestado de um aforismo cunhado pelo francês Jean-Anthelme Brillat-Savarin, autor do A fisiologia do gosto. Tão logo terminou o mestrado, Clarissa Galvão alargou o campo de interesses e, mantendo a mira nas relações que partem da comida para reverberar na sociedade contemporânea, começou o doutorado em Sociologia com foco na profissionalização da gastronomia.

Foi na fase final da escrita da tese, em que se dividia entre horas de redação com a revisão de Dize-me o que comes e te direi quem és, que a pesquisadora recifense recebeu a Continente. “Como uma pessoa que gosta de comer, e que tem memórias alimentares relacionadas a uma grande família, já me interessava por comida e pelas relações que se estabelecem a partir dela”, diz. A pergunta que lhe serviu de gatilho foi: quem são os gastrônomos? “São pessoas que têm tempo e recursos para cultivar esse hobby da gastronomia. Mas o que as aproxima? E o que as leva a investir nisso? Era isso que eu queria entender”, reforça Galvão.


Capa do livro de Clarissa Falcão. Imagem: Reprodução

Para fins analíticos, ela enquadrou os gastrônomos em três tópicos distintos. “Havia os profissionais da gastronomia, como chefs, donos de restaurantes e jornalistas especializados na crítica culinária; os amantes da boa mesa, as pessoas que gostam de receber os amigos para dividir suas novas descobertas; e os estudantes de Gastronomia, que são aquelas pessoas que se matricularam num curso superior da disciplina”, explica. Ao todo, foram 12 entrevistados. Após a fase da coleta de dados, veio o cotejamento com os estudos sociológicos. Alberto Melucci (1943-2001), Max Webber (1864-1920) e Pierre Bourdieu (1930-2002) foram alguns dos autores utilizados por Clarissa Galvão para criar o arcabouço teórico do seu trabalho.

Dize-me o que comes e te direi quem és é uma interessante investigação de um fenômeno percebido em qualquer lugar do planeta – da França, berço da alta gastronomia, ao Brasil, lugar onde logo se difundiu uma expressão como “raio gourmetizador”, um chiste sobre a “gourmetização” de tudo que se refere ao prazer de comer. “As escolhas cotidianas formam o processo de construção da narrativa da nossa identidade e passam uma mensagem de quem somos. A equação entre o que você é o que você quer ser é perpassada pelos marcadores identitários. Classe social, gênero, raça e nacionalidade, por exemplo, são marcadores ‘clássicos’, por assim dizer; mas os gastrônomos são pessoas que também podem ser identificadas por essa relação com a gastronomia”, explana a pesquisadora.

Além de reflexões sobre identidade – “como você vê a si mesmo e como os outros lhe veem, ou seja, a autoidentidade e a identidade social”, nas palavras da autora, o livro fala do estilo de vida engendrado por quem vive da gastronomia ou fez dela mais do que um passatempo. Clarissa Galvão observa que esse tema é ainda visto como “frívolo, menor e desimportante” em alguns círculos acadêmicos. “Nos congressos e seminários que frequento, não existem mesas específicas sobre isso, ou mesmo linhas de pesquisa. É um campo de estudo ainda à margem”, comenta. Nesse sentido, sua contribuição, já relevante para os que, sem dominar a Sociologia, entendem que o assunto é indissociável do mundo tal qual se estrutura hoje, é muito mais do que valiosa. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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