Domenek: Um personagem de carne e osso
Livro de poeta brasileiro radicado na Alemanha incita questionamentos sobre fronteiras entre gêneros. Podemos ler poemas como romances?
TEXTO Schneider Carpeggiani
01 de Março de 2012
Ricardo Domenek
Foto Amos Fricke/Divulgação
Ricardo Piglia nos fala sobre a existência de uma fotografia em que se vê Jorge Luis Borges tentando decifrar as letras de um livro que segura grudado ao rosto. Lê as páginas abertas à sua frente como se estivesse diante da tábua de revelação do mundo, ou mesmo já prenunciando que aquelas letras seriam as últimas que enxergaria. Borges foi o “leitor-modelo” do século 20, alguém que deixou como ensinamento maior a perspectiva de que a ficção não depende de quem a constrói, mas de quem a lê. É possível ler tudo como ficção. É também possível ler tudo como verdade. O leitor é um investigador que cria suas suposições e trilhas a despeito da sociedade, das convenções e do criador original da obra. Leitura é declaração de independência.
Ao publicar um livro com o título Ciclo do amante substituível (frisando a precisão “do” amante e não “de” um amante), o poeta brasileiro, radicado em Berlim, Ricardo Domeneck, deixa uma trilha de biografemas para que o leitor siga e, talvez, perca-se. Há ainda a dedicatória “a Jannis Birsner”, que nos leva a farejar outras conexões possíveis. Seria Jannis o tal amante substituível ou o arquétipo perfeito de todos os amantes que já substituímos e/ou substituiremos algum dia? Ou o escritor estaria propondo um exercício de exibicionismo público, despindo, como um stripper, suas frustrações para uma plateia de leitores?
Os questionamentos prosseguem: É possível ler um livro de poemas como um romance? Ou com os pressupostos esperados de uma autobiografia sensacionalista, menosprezando assim a intrincada matemática exigida por um verso? Borges, certamente, abençoaria essas possibilidades e transformaria a dedicatória para Jannis em algo tão palpável e concreto quanto o mundo de Tlön, que o escritor argentino jurou ter encontrado num verbete da Enciclopédia Britânica.
O poeta (como Domeneck gosta de ser chamado) dá início ao seu livro justamente com um texto em prosa (o único em toda a obra), no qual lista perdas e danos, como se necessitasse de um prólogo (ou seja: uma desculpa, um álibi) que sustentasse as palavras a seguir e ampliasse nossa curiosidade em torno de um Jannis feito de carne, osso e abandono: “Seja para sair pela porta da frente ou receber pelo correio o convite para retirar-me, carrego as próprias pernas com os dentes, cão com o rabo entre as costelas fazendo ligações a cobrar, tanto para o serviço de atendimento ao perdedor como para o que me derrota, o derrocado. Minhas mandíbulas desacostumaram-se das mordidas, culpa dos meses em que ladrei apenas com legendas”.
Pelo restante do livro, o poeta declara que toda Medeia pouca é bobagem e se confessa uma Medeia-Maysa. Parece saber – e nos avisar – que toda desilusão amorosa se equilibra entre a tragédia grega e uma música popular.
Como estamos falando de uma obra que tematiza ciclos, há um ponto que antecede a irrevogável substituição do amante. O instante zero de fascínio amoroso. Jannis recebe a precisa dedicatória do poema Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos, que enaltece o êxtase e desconhece o amargor de um samba-canção: “Houve/ guerras mais duradouras/ que você./ Parabenizo-o pelo sucesso/ hoje/ de sobreviver à expectativa/ de vida/ de uma girafa ou morcego,/ vaca/ velha ou jiboia-constritora,/ coruja./ Pinguins, ao redor do mundo, e porcos,/ com você concebidos, morrem./ Saturno,/ desde que se fechou seu óvulo,/ não/ circundou o Sol uma vez única”.
Jannis reaparece, ainda que desta vez não evocado diretamente, como a inspiração capaz de resgatar o poeta de uma existência pregressa de desilusões, fazendo-nos entrever que nem sempre a crença num “ciclo do amante substituível” foi uma realidade irrevogável. Houve, sim, um momento de suspensão, um “antes” da máscara de Medeia-Maysa ser uma fantasia pouco carnavalesca colada à face: “nunca mais comensal de farelos e migalhas/ de machos-alfa ou godfathers,/ e doravante/ não mais sofresse a dependência/ dos movimentos voluntários/ alheios/ para exercitar no amante meus cinco sentidos,/ ou acabar, como sempre dantes, forçado,/ com minha própria mão febril/ sobre minha própria testa,/ a constatar e provar a mim mesmo a minha febre,/ pois relegaria a você, moço,/ a regulação da nossa temperatura”.
Jannis é o amante, mas não o único objeto de desejo, a trafegar diante de um escritor carente por epifanias (como costumam ser os escritores) e por musos ocasionais. O poema O acordeonista da Catedral de Bruxelas se ergue num crescendo de erotismo, na visão ideal que parece ser o desejo de todo flâneur: “De Bruxelas eu/ esperava tudo, talvez (…)/ mas não/ este acordeonista/ loiro de 20 anos/ diante da Catedral,/ sim, a de Bruxelas,/ acordeonista loiro e imberbe,/ alto e imundo,/ a quem doei 2 euros/ num excitativo segundo de tato/ entre sua mão e meus dedos fechados/ abrindo-se em bojo sobre sua palma/ após fazer com a visão/ o rodízio contemplativo e luxurioso”. O acordeonista permanece anônimo até o fim do poema, como anônimas costumam ser essas fantasias/visões, a despeito da frustração do poeta em travar alguma possível maior intimidade: “e passarei a chamar de Loïc/ ou quem sabe Guillaume/ pelo resto dos meus dias/ após falhar em criar os colhões/ de pedir seu nome”.
O acordeonista, um desconhecido, assim como de certa forma acaba sendo Jannis, esse alvo de uma dedicatória, que acabamos conhecendo tanto e tão pouco ao final do livro. É compreensível. Afinal, Ciclo do amante substituível é uma obra de ficção, embora sua narrativa pareça devedora de pessoas e fatos reais, negando qualquer mera coincidência. E é justamente nessa fricção entre memória e imaginação que uma obra literária faz sentido e nos proporciona a liberdade borgiana de interpretá-la à nossa vontade. Somos nós que escolhemos o ponto exato onde parar no ciclo dos amantes; é nossa a escolha de substituir ou não a figura de Jannis, ainda que estejamos diante de uma roda-viva.
Escritor de obsessivo cuidado com a escolha da palavra exata (para além de biografemas e conjecturas que venham a atropelar o leitor), Domeneck fez da sua “teoria” sobre um possível (e não o possível, para não sermos tão deterministas quanto o poeta) ciclo do amante substituível uma obra de pura sedução estética.
SCHNEIDER CARPEGGIANI, jornalista, editor do suplemento Pernambuco e doutorando em Teoria da Literatura.