A artista chega, então, ao ápice da performance: imersa na vida de gângster, decide fazer uma cirurgia de aumento de seios. Durante quatro dias, compartilha todo o processo cirúrgico fictício nas suas redes sociais. Posta fotos de si mesma com uma bata hospitalar, depois publica imagens dos seios enfaixados e, por último, coloca uma fotografia do próprio busto, coberto por um top de ginástica. E agradece a todos pelo apoio na jornada. A performance da artista parece tão real, que os seus seguidores no Instagram e amigos no Facebook passaram a acreditar que Amalia estava realmente vivendo aqueles processos. A mentira nas redes sociais conseguiu enganar, inclusive, os amigos da artista, com os quais ela precisou ter uma conversa para explicar que aquilo não passava de arte.
A francesa Orlan realizou, entre os anos de 1980 e 1990, nove cirurgias plásticas para discutir a ditadura dos padrões de beleza. Foto: Divulgação
O trabalho de Amalia Ulman, considerado um dos exemplos mais bem-sucedidos da net art – corrente artística nada homogênea que se tornou ainda mais forte e disseminada mundialmente a partir do surgimento da internet banda larga, nos anos 2000 –, mostra como a arte das redes tem refletido sobre a forma pela qual os nossos corpos têm sido exibidos, manipulados, criados, transformados ou deturpados na internet. “Os corpos podem se desfazer, perecer, nos desapontar, nos promover. Os corpos representam quem somos, qual é a nossa história, de onde viemos. Não podemos escapar deles”, escreve Amalia Ulman, em um dos slides artísticos que utiliza em palestras performáticas apresentadas em diferentes lugares do mundo.
É ele – o corpo que pode ser um investimento, carne que tem preço de mercado – uma das principais inquietações da artista. Diante de um cenário contemporâneo no qual os corpos são transformados em imagens, com o intuito de gerar uma quantidade de dinheiro que é proporcional ao grau de satisfação dos estereótipos de beleza correntes, Amalia Ulman manipula a própria imagem para mostrar como é fácil enganar uma audiência através de representações corporais falsas. Assimila os gestos e a lógica dos sistemas de dominação, pensando que assim se opõe melhor a eles. Como explica o pesquisador espanhol Juan Martín Prada, autor do livro Prácticas artísticas e internet en la época de las redes sociales (Práticas artísticas e internet na época nas redes sociais), “o que Ulman quer fazer é, acredito, uma resistência estratégica baseada em duplicar o sistema de espetacularização dentro de sua própria lógica, refletindo-o como um espelho para, por último, subvertê-lo”.
Gabriela Pugliesi administra perfis e dá dicas de beleza fitness. Garotas sul-coreanas postaram imagens de suas cirurgias de ocidentalização. Fotos: Divulgação
Amalia resgata, então, o mesmo espírito de resistência trazido pela artista francesa Orlan, nas décadas de 1980 e 1990, que é o da crítica através da assimilação. De 1990 a 1993, Orlan realizou uma série de nove cirurgias plásticas, não com o intuito de criar uma versão mais jovem de si mesma – como acontece com a maior parte das mulheres que se submetem a tais procedimentos –, mas com a intenção de trabalhar a questão da imagem e da cirurgia de maneira artística, através da crítica aos padrões de beleza que normalmente regem tais processos cirúrgicos. Como ela escreve no Manifesto da Arte Carnal, em 1990, no qual define as próprias práticas artísticas, “a Arte Carnal não está interessada no resultado de uma cirurgia plástica, mas no processo da cirurgia, no espetáculo e no discurso do corpo modificado que já alcançou um lugar no debate público”. Trata-se de algo semelhante ao que fez Amalia Ulman, 25 anos depois, em Excellences & perfections, quando colocou a cirurgia de aumento de seios como centro de um debate na internet de onde emergiram várias críticas e inúmeros elogios.
A discussão sobre como as imagens de corpos padronizados afetam materialmente outros corpos humanos sinaliza que o conteúdo exibido nas redes não está isolado em uma redoma de vidro, fechado na tela preta do computador ou do smartphone. Em outras palavras, tais debates mostram que o que está na internet, na verdade, realiza uma profunda ação no mundo material, porque o corpo, quando virtualizado em forma de imagem, ainda guarda a força da sua materialidade em potência. Como escreve Pierre Lévy, no livro O que é o virtual?, de 1995, “os clones, agentes visíveis ou marionetes virtuais que comandamos por nossos gestos podem afetar ou modificar outras marionetes virtuais ou agentes visíveis, e, inclusive, acionar a distância aparelhos ‘reais’ e agir no mundo ordinário”.
Os corpos, na internet, ganharam uma força impensável anos atrás, porque não se imaginava que as plataformas existentes na rede integrariam a nossa vida com tamanha intensidade, chegando a caber na palma das nossas mãos, na forma de smartphones. Os nossos avatares na internet não são mais apenas isso. São nós mesmos. É como se, hoje, tivéssemos chegado ao ponto de não vermos mais os nossos perfis nas redes sociais como um simples avatar de video game, distantes e diferentes de quem somos. Por constrangimentos ou necessidades sociais, praticamente só somos autorizados a ser, na internet, quem já somos no mundo ordinário, porque é assim que o outro pode nos acessar em tempos de dependência da rede como espaço de encontros e interações sociais. Como explica Juan Martín Prada, “é evidente que, em nossas sociedades, estar conectado de forma quase permanente está deixando de ser uma opção para se converter em um estado necessário, em uma condição para a não exclusão social”.
Trabalhos de net art funcionam, então, como caminhos para refletir sobre manifestações e fenômenos encontrados na rede que influenciam legiões de pessoas a transformar os próprios corpos, caso das garotas sul-coreanas que postam selfies no Instagram após profundos e violentos processos cirúrgicos de “ocidentalização” dos próprios rostos; das jovens anoréxicas que até pouco tempo utilizavam seus blogs para trocar dicas de emagrecimento; e, recentemente, dos fenômenos no Instagram que propagam um ideal de beleza fitness, caso de Gabriela Pugliesi, que largou o emprego em uma joalheria para cuidar dos seus perfis nas redes sociais, através dos quais mais de 993 mil seguidores “aprendem” a como ser saudáveis diariamente. O preço de tamanha “conversão virtual” a um determinado padrão de beleza é uma exposição constante de corpos privados de intimidade, como se eles não pertencessem a apenas uma só pessoa, mas a várias.
No vídeo Pix, de 2014, cineasta português Antonio da Silva agrupa selfies tiradas e postadas por gays. Foto: Reprodução
IMAGENS LÍQUIDAS
Desde que as câmeras fotográficas passaram a ser embutidas em smartphones, tornando-se mais leves e mais portáteis, começamos a tirar fotos de nós mesmos. Quando a internet se incorporou a esses dispositivos móveis, nossas imagens privadas entraram no fluxo da rede de uma forma natural, como se o que fosse íntimo pudesse, sem constrangimentos, tornar-se, de repente, público. Assim, hoje, proliferam imagens de nossos rostos na rede. Batizamos esses autorretratos de selfies, considerada inclusive a palavra internacional do ano de 2013 pelo dicionário inglês Oxford. Sem percebermos, lançamos um novo paradigma com relação à exibição dos corpos na rede. Seriam eles menos íntimos do que antes? O que queremos dizer e provocar quando tiramos vários autorretratos e postamos essas imagens amadoras nas redes sociais? Estaríamos mergulhados em uma época de narcisismo on-line?
Essas perguntas inquietantes levaram o net artista holandês Jasper Elings a reunir várias selfies, encontradas aleatoriamente na internet, no vídeo Flashings in the mirror, em 2010. “Nossos corpos estão sendo representados na rede de uma maneira massiva. Todo mundo tira e compartilha fotografias de si mesmo. Estamos nos imortalizando diariamente”, justifica o artista. O trabalho criado por ele mostra uma sucessão rápida de selfies diante do espelho, tiradas por pessoas nuas, vestidas, negras, brancas, gordas, magras, sozinhas ou acompanhadas. Sempre diante do espelho, entretanto. No vídeo, os flashes que vêm dos dispositivos fotográficos surgem como reflexos no espelho e formam um círculo cujo centro pode ser o próprio desejo humano de se sentir acolhido.
Para o teórico Juan Martín Prada, nós nos situamos hoje em uma evidente crise do introspectivo, pois vivemos um permanente intercâmbio de intimidades ou em uma constante espetacularização da intimidade. “É como se tivéssemos alcançado um momento extremo daquilo que foi vaticinado por Walter Benjamin, em que a Humanidade ‘que antes, em Homero, era objeto de espetáculo para os deuses olímpicos, se converteu agora em um espetáculo de si mesma’ ”, acredita. Hoje, o nosso objeto de espetáculo somos exatamente nós mesmos.
A selfie enquanto fenômeno contemporâneo ímpar, sinalizador de novos tempos com relação à privacidade dos corpos, também foi investigada pelo cineasta português Antonio da Silva, no vídeo PIX, de 2014. Ele agrupou sucessivamente 2.500 selfies tiradas e postadas por homens gays, desde quando estão vestidos até quando mostram os próprios abdomens, peitorais, bíceps, nádegas e genitais completamente nus. No trabalho, o cineasta revela como o nu na internet conversa imageticamente com o pornô, com a diferença de que quem tira selfie nu na internet, ao contrário dos atores de vídeos pornôs, não recebe dinheiro para isso. Ganha – como pagamento por terem desvelado suas intimidades – afetos em forma de curtidas, compartilhamentos e comentários. Talvez só Amalia Ulman mesmo tenha descoberto como capitalizar os seus autorretratos diante do espelho: no ano passado, no leilão de arte digital Paddles ON!, ela vendeu sua selfie por 3.250 libras.
BÁRBARA BURIL, jornalista, com pesquisa em arte, tecnologia e imagem.
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