No livro Fabuleuses dentelles, as autoras Janine Montupet e Ghislaine Schoeller afirmam que a história da renda caminha junto com a dos costumes e dos mobiliários. Dizem, também, que ela teria sido originada a partir do bordado. Afirmam, inclusive, que os dois principais tipos de rendas, as produzidas com agulha e as preparadas com os bilros, surgiram no mesmo período. O local preciso, entretanto, é ainda um mistério para os que amam e pesquisam o assunto. Alguns supõem que elas podem ter sido criadas na Itália. Mas ninguém assevera qual localidade teve a primazia de ser a precursora das finas tramas.
“Não há provas de que o puy-en-velay francês não precedeu os pontos de Gênova e de Milão ou os entrelaçados em ouro e prata espanhóis”, escrevem as autoras. Como outros pesquisadores, elas admitem que as rendas podem ter sido inventadas, remotamente, pelos orientais. Mas, como inexistem registros dessa suposição, convencionou-se datar seu surgimento na Europa renascentista, época em que pontos fabulosos foram criados por artesãs magníficas.
O que as autoras também apontam é que usar rendas, para os europeus quinhentistas, significava carregar moinhos e terras nos ombros. Significava ter poder. “Eram peças caríssimas, elas seduziam e fascinavam homens e mulheres nobres... e mesmo os reis e o clero estavam a serviço do luxo e da futilidade dessas belezocas.”
Rendas francesas foram criadas no século 17, sendo inigualáveis em
originalidade e romantismo. Foto: Reprodução
As peças criadas na Europa eram trançadas em linho, mas também em algodão, ouro e prata. Na Itália, cavaleiros e nobres usavam as chamadas camisas de pourpoint, com rendas da gola até a cintura, símbolo de dinheiro e de fidalguia. Até mesmo os ingleses, severos protestantes, sucumbiram à sua beleza.
No reinado de Luís XIV, elas atingiriam o ápice e ostentariam toda a suntuosidade da corte do Rei Sol. No de Luís XV, quando a França seria praticamente “invadida” pelas rendas, elas se tornariam mais flexíveis, leves. “Não seriam mais do que um tecido de malha semeado de pontos e florzinhas”, explicam as autoras.
A Revolução de 1789 eliminou a renda do vestuário por mais de uma década, período em que o país ficou privado de um dos seus mais charmosos ornamentos, assim como milhares de pessoas ficaram desempregadas. Napoleão I a traria de volta, coroada de glória.
No século 19, a Revolução Industrial daria um duro golpe nas rendas artesanais. Com o advento das máquinas, elas passaram a ser produzidas mecanicamente, desempregando milhares de artesãs. Após a Primeira Guerra Mundial, foram substituídas pelas industriais. Poucas casas tradicionais conseguiram se manter ativas. As italianas de Burano, que possuíam uma magistral técnica herdada das venezianas, perduraram até a década de 1970, quando, finalmente, foram massacradas pela industrialização.
Criados nos século 16, os elaborados pontos venezianos foram copiados por
toda a Europa. Foto: Reprodução
CONSUMO E DISPUTAS
O vestido de casamento usado pela princesa Kate Middleton, cujas núpcias com o príncipe Williams mobilizaram, há alguns meses, habitantes de todo o planeta, são um exemplo claro da beleza e da perfeição alcançada pelas rendas europeias. Mais do que isso: são a prova de como elas estão associadas à realeza, ao sublime, ao transcendente.
As notícias divulgadas sobre o vestido da noiva, produzido por Sarah Burton, da casa Alexander McQueen, afirmam que o trabalho, de inspiração vitoriana e pautado numa técnica irlandesa de 1820, foi feito à mão pela Royal School of Needlework (Escola Real de Costura). Uma comprovação da competência técnica europeia na confecção de trabalhos elaborados, história que começou a ser criada há cinco séculos, em vários centros do velho continente.Também segundo as autoras de Fabuleuses dentelles, Veneza foi um dos mais importantes e renomados deles. Na cidade italiana, no século 16, foram criados pontos originais, como o de rosa, de neve e o gordo, aplicados como detalhes em golas, golões e toucas usadas pela nobreza e pelos grandes comerciantes.
Os pontos venezianos eram considerados de uma perfeição única na Europa. Imitados por todos, foram amplamente copiados pelos franceses, que, em poucas décadas, conseguiram aprender a técnica, e até superá-la.
Outras cidades italianas também fabricavam e exportavam rendas belas e trabalhadas. Gênova foi, inclusive, bombardeada por Luís XVI, em represália ao fato de as francesas gastarem muito com os produtos da cidade. Lá, o que imperava eram as peças em bilro, que também eram produzidas em Milão, com fios de ouro. Em 1613, um edital do rei proibiu o uso, pelas francesas, de todos os produtos milaneses. A França travou verdadeiras batalhas para coibir a importação das rendas produzidas pelos italianos.
MIL DETALHES
Foi Catarina de Médici quem introduziu o uso da renda na corte francesa, provocando um consumo exagerado e desenfreado, o que fez com que os cofres da França fossem praticamente esvaziados, devido aos custos de importação. Por isso foi promulgado um decreto real que proibia o uso da renda pela corte e pela população. A partir desse momento, os franceses se deram conta de que lucrariam mais produzindo do que importando. Colbert, ministro e general de Luís XVI, foi quem teve a ideia de recriar os pontos italianos em território francês.
A princesa Kate Middleton usou vestido e inspiração vitoriana, com renda produzida pela Escola Real de Costura. Foto: Divulgação
Em 1665, fundou em Alençon as manufaturas reais, nas quais 30 rendeiras de Veneza e 200 de Flandres criaram o ponto de agulha da França, ou o ponto de Alençon. “A artesã Marthe Laperrière, que seria sua grande mentora, copiara certas características venezianas, mas criara outras geniais, que as tornariam únicas”, escrevem Janine Montupet e Ghislaine Schoeller. Essas rendas eram caracterizadas por medalhões e uma enorme diversidade de detalhes. Outras cidades francesas se tornaram famosas pela confecção de rendas: Chantilly, Lille, Bailleul e Valencianne, que se destacou pela produção em bilro.
Em Portugal, existem relatos de que, no ano de 1560, durante o reinado de Dom Sebastião, se falou pela primeira vez em renda. No reinado de Dom João V, o país foi influenciado pelas rendas produzidas em Flandres, uma vez que o protocolo da corte obrigava o uso das rendas flamengas, o que veio a prejudicar as rendas nacionais.
Essa proibição, relata Manuel Maria de Sousa Calvet de Magalhães, em Bordados e rendas de Portugal, acabou deflagrando uma revolta das rendeiras nortenhas, que enviaram seus protestos ao rei. A livre confecção de rendas nacionais somente foi autorizada em 1751, no reinado de Dom José.
DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.