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Crônicas de um comensal filósofo

Em reedição digital, textos de Apicius (pseudônimo do colunista carioca Roberto Marinho de Azevedo Neto) evidenciam mudança de ética ocorrida nas relações entre jornalistas e produtores gastron

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Dezembro de 2015

Ilustração Apicius/Reprodução

Hoje, você abre os cadernos culturais de final de semana e lê matérias muito favoráveis a restaurantes de chefs renomados. Tanto a casa comentada quanto o jornalista setorizado – muitas vezes alçado a crítico gastronômico – são estrelas conviventes. Mesmo que as publicações tradicionais – jornais e revistas – tenham perdido algo do seu poder persuasivo (uma palavra final sobre as coisas do mundo), ainda é verdade que a opinião neles publicada importa. Isso significa que o público lê esses textos e sofre a influência, acorrendo, quase sempre, aos lugares indicados, ávido, ele também, por ser uma dessas estrelas conviventes. Aliás, bem sabemos, a sociedade brasileira de agora está repleta de gourmets, entendedores de vinhos, de cervejas artesanais, de sais do Himalaia e mil coisinhas afins que se compram na delicatéssen mais próxima.

Embora as afetações à mesa sejam históricas, houve um tempo em que não havia tanto profissionalismo e, digamos, cumplicidade nas relações entre cozinheiros, donos de restaurante e jornalistas, sendo também o público mais desinformado sobre o assunto, embora não menos ávido por demonstrações de status e diferenciação social pelo que levava à boca. É nesse contexto que se apresentam as crônicas de Apicius, pseudônimo do jornalista Roberto Marinho de Azevedo Neto, que militou no carioca Jornal do Brasil, entre os anos 1975 e 1997, assinado a coluna À mesa, como convém. (Somente lembrando que o JB foi o jornal de circulação nacional mais respeitado nos anos 1960/80.) Ler Apicius na reedição de Confissões íntimas (José Olympio, 1986) empreendida pela editora digital Cesárea nos esclarece quanto a uma ética profissional que se modificou, pois que ele fazia questão do anonimato, de não se apresentar como estrela convivente ao chegar aos estabelecimentos, gozando, assim, de liberdade de escolha e expressão.

Só uma pausinha, leitor, para comentar os acasos desta reedição. A jornalista e professora Renata do Amaral, colaboradora da revista Continente e pesquisadora em gastronomia, achou um exemplar da coletânea num sebo, fato que colaborou para uma guinada acadêmica: “Meu encontro com a obra de Apicius foi tão impactante, que sua análise responde por boa parte de minha tese Virada gastronômica: como a culinária dá lugar à gastronomia no jornalismo brasileiro”, escreve ela, no prefácio que produziu para esta edição, que é, na verdade, fac-similar, pois reproduz a da José Olympio, ilustrada divertidamente pelo próprio Apicius (o desenho aqui estampado, por exemplo, compõe a crônica Adegão português).

Então vamos um pouquinho ao comentário dos textos. Primeiro que não são matérias, coberturas de eventos, críticas propriamente ditas, mas crônicas, na sua mais pura acepção. Porque, nesta seleta realizada por ele mesmo, Apicius parece estar sempre de passagem pelos lugares, em despropósito, tal qual o flâneur que descobre coisas ao acaso. Também há um ponto de vista subjetivo, melancólico, irritadiço, irônico em todos os textos, que nunca partem de uma motivação pragmática – a abertura de um novo restaurante, por exemplo –, mas de sensações, impressões, de estados de alma. Apesar da variedade de situações – desde a propagação da pizza (leia no box) a pequenas viagens –, há uma opinião subjacente ao conjunto: a de que a simplicidade e a honestidade fazem as melhores casas, a melhor refeição. Apicius abomina as falsificações e a afetação que, quase sempre, escamoteiam incompetências e – o que é pior – o desejo vil de ganhar dinheiro às custas da ingenuidade alheia. 

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora-chefe da revista Continente.

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