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Cristóvão Tezza: Em torno de um (des)encontro

Em 'Beatriz', seu primeiro livro de contos, o autor catarinense, radicado em Curitiba, retoma os personagens de 'Um erro emocional'

TEXTO Schneider Carpeggiani

01 de Janeiro de 2012

Cristovão Tezza

Cristovão Tezza

Foto Divulgação

Se fosse um estrategista, um técnico de futebol, Cristovão Tezza teria armado a jogada perfeita. Na primeira página do romance Um erro emocional (2010), encontra-se o medo de dois jogadores diante não do pênalti, mas da entrega a essa coisa imediatista que convencionamos chamar de “paixão”, por falta de outro substantivo de lastro mais fulminante. Uma mulher abre, displicentemente, a porta para um estranho que conhecera há poucas horas. Jogada errada.

“Cometi um erro emocional,” confessa o estranho, logo nas primeiras linhas, logo no passe inicial do livro. “Beatriz se imaginou contando à amiga dois dias depois – foi o que ele disse assim que abri a porta, o tom de voz neutro, alguém que parecia falar de uma avaliação da Bolsa, avançando sem me olhar como se já conhecesse o apartamento, dando dois, três, quatro passos até a pequena mesa adiante em que esbarrou por acaso”, narra Tezza, visivelmente fascinado com a destreza dos seus “jogadores” em não saberem se movimentar em campo. Como estrategista, Tezza é um sádico dos melhores.

A movimentação dos dois jogadores – um escritor e uma revisora – pelo romance persiste por poucas horas, com frases pela metade (travestidas em confissões), uma garrafa de vinho, uma pizza prestes a esfriar e, na mente do leitor, um pedido, que só agora tive como fazer ao escritor: “Tezza, por favor, explique o que é um erro emocional!”

“É engraçado, mas não sei a resposta. O romance Um erro emocional nasceu para ser um conto, com a perspectiva do conto, e a ideia de que alguém possa cometer ‘um erro emocional’ era o gancho do que teria sido um breve divertimento narrativo. Há um toque de sedução na expressão do personagem Paulo Donetti, que quer seduzir Beatriz, e usa a expressão para causar um estranhamento irônico. Só que o texto tomou um rumo muito mais denso e deu no que deu: virou romance. Quis também brincar com o paradoxo, a ideia de que a paixão amorosa seria um espécie de erro das emoções. Aliás, pensando bem, acho que é mesmo”, respondeu, deixando elipses, como costuma fazer todo escritor que se preze.

Donetti, o tal jogador de sentimentos errados, e Beatriz retornam em Beatriz, primeiro livro de contos de Tezza, que utiliza agora seus “superpoderes” como escritor para montar e desmontar, outra vez, o destino desses personagens, com lances entre o carinho e a fúria divina. Não se trata de uma continuação do romance, e, sim, do seu princípio.

Agora, Tezza nos conta as preliminares do “erro” e faz uma espécie de making of de como criou Beatriz e Donetti, de como se deixou fascinar pelos dois e de como ele próprio, de certa forma, também abriu aquela mesma porta para um erro emocional. “Agora sei mais sobre Beatriz e Donetti do que sabia ao inventá-los”, revela.

Esse catarinense, radicado em Curitiba, virou unanimidade com O filho eterno (2007), romance que mexeu em verdadeiros e imaginários arquivos familiares. Nas entrevistas que fiz com Tezza, desde que o livro foi lançado, era incrível sua tranquilidade em prosseguir a carreira, como se nada houvesse acontecido, sem rastro de estrelismo, apesar das expectativas altíssimas que a obra havia lançado nas suas costas.

Lembro que conversamos rapidamente, logo após ele ter recebido o Prêmio Portugal Telecom por O filho eterno. Foi durante a festa de premiação, em São Paulo, em 2008, com champanhe e uísque voando sobre nossas cabeças. Nas poucas palavras que trocamos, ele só conseguia falar sobre uma história de amor que monopolizava sua criação, à época. Recordo que ele corrigiu a palavra “amor” logo em seguida. Não era bem “amor”, mas um jogo entre duas pessoas, regido por uma atração fulminante, com toda a ação acontecendo em pouquíssimas horas, como um Ulisses emocional. Não houve muita discussão sobre o livro, então vencedor, naquela noite. Tezza parecia já ter dito tudo o que fora necessário sobre tal obra, ainda que não se negasse a continuar repetindo as mesmas respostas para o batalhão de repórteres.


Autor recebe, em 2008, das mãos da atriz Fernanda montenegro o Prêmio Portugal Telecom de Literatura pelo livro O filho eterno. Foto: Carol Guedes/Folhapress

Escritores precisam esvaziar as suas criações, abortá-las, logo que elas são publicadas. Eles seguem em frente, a despeito de nossas dúvidas, de nossa insistência em retornar aos mesmos parágrafos, às mesmas frases que nos (des)completam.

ISCA DE LEITOR
A tranquilidade perante expectativas de anos atrás permanecia intacta na entrevista que tivemos no mês passado. Ele parecia ainda mais distante do seu best-seller. Mas sua editora (especialista em livros que alcançam grandes cifras) nos lembra o passado, na capa de Beatriz, que chega às livrarias revestido pelo mercadológico aviso “Autor de O filho eterno”.

“Sim, já me sinto completamente distante da repercussão extraordinária que O filho eterno teve. Do ponto de vista do meu trabalho, essa repercussão não me mudou, rigorosamente, em nada. Como sempre, sigo minha vida de escritor, que é escrever um livro depois do outro…”, afirmou Tezza, reprisando a segurança das nossas conversas anteriores.

“A capa é sempre uma opção da editora, e eu não me opus a essa menção. Afinal, uma das tarefas mais difíceis para um escritor brasileiro é se tornar realmente conhecido dos leitores. Parece simples, mas é muito difícil. Como O filho eterno foi o livro que, de certa forma, me tornou mais conhecido no Brasil (quer dizer, a popularidade sempre bastante limitada da literatura…), não faz mal relembrar aquele título ao leitor potencial”, ponderou.

Os contos de Beatriz são precedidos por um longo prólogo (“Sei que prólogos estão fora de moda – até a palavra é engraçada, com seu sabor antigo”, desculpa-se, nas primeira linhas do texto), em que Tezza “contextualiza” o fato de só agora estar lançando o primeiro livro de contos. É como se houvesse uma espécie de pudor em publicar uma obra de narrativas breves, após ter escrito alguns dos romances mais elogiados da literatura brasileira contemporânea. Mas não se trata de pudor, ele corrige, como se estivesse evitando que eu cometesse algum erro (crítico ou mesmo emocional) no julgamento do seu livro.

“Não é pudor. É, digamos, vocação. Passei mais de 20 anos sem escrever um conto. Isso diz algo da minha inclinação como escritor. Mas como não estamos condenados a nada na vida, depois de O filho eterno, comecei a escrever os contos de Beatriz, que me deram bastante prazer, a ponto de eu organizá-los em livro. O prólogo foi o modo que encontrei para contar a sua gênese e conversar um pouco sobre literatura, numa perspectiva não acadêmica”, reflete.

O personagem Donetti é um escritor trapalhão, melancólico, entediado com a iconoclastia típica do mundo literário no qual se vê obrigado a habitar ... Ele é a promessa de criador de uma obra-prima que não consegue concretizar. Quando conhece Beatriz, enxerga na conquista amorosa a chance de criação de uma nova realidade, que não está conseguindo realizar na escrita. Beatriz é sua miragem, sua “Morte em Veneza”. Nas hábeis mãos de Tezza, essa “transferência criadora” parece um joguete, para que a história discuta questões literárias, para além de um viés teórico. O autor nega, no entanto, qualquer manifestação teórica deliberada.

“De modo algum. Muito das discussões temáticas que atravessam o livro vem diretamente da vida dos personagens. Afinal, Donetti é um escritor, tudo que ele faz e diz gira em torno dessa realidade. Beatriz é uma mulher ‘literária’, que também vive em torno da palavra escrita. Assim, é normal que eles ponderem sobre esses tópicos ao longo da narrativa. Mas, em nenhum momento, cedo à tentação acadêmica de fazer da ficção um ‘campo de ensaio’ teórico. São dois movimentos incompatíveis: a pressuposição de verdade de todo pensamento científico e a inescapável ambiguidade de toda linguagem ficcional. O pior dos mundos é escrever uma tese como se fosse um romance, ou escrever um romance como se fosse uma tese. Espero não ter cometido esse erro”, afirma. “A propósito, estou terminando um ensaio com toques autobiográficos, que trata dessas questões. Vai se chamar O espírito da prosa, e sairá no próximo ano, pela editora Civilização Brasileira”, adianta Tezza.

Apesar da força das histórias de Beatriz, o livro tem sido recebido com certa restrição por parte da crítica, que costuma tecer longos elogios a toda produção lançada por Tezza. Na verdade, é incrível o quanto a imprensa literária, no Brasil, guarda ressalvas em relação aos contos. Foi o caso da recepção morna que Milton Hatoum e Ronaldo Correia de Brito tiveram, há pouco, com seus recentes (e ótimos) livros de contos. Tezza parece ser a mais recente vítima dessa visão limitada. Ele tem consciência disso, mas não é o tipo de autor que se acomoda a fórmulas prontas ou que resista a abrir sua porta a possíveis (e irresistíveis) erros: “É fato que o mercado editorial hierarquiza os gêneros. Para as editoras, o romance é de ouro, o conto de prata e a poesia… bem, a poesia sofre demais para ser publicada. Mas não acho que, para os leitores e para a crítica, haja um preconceito contra o conto. É uma noção que precisa ser revista”. 

SCHNEIDER CARPEGGIANI, jornalista, editor do suplemento Pernambuco e doutorando em Literatura.

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