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Confraria dos truques

Médicos, funcionários públicos, arquitetos, pedreiros, motoristas e vendedores têm feito da mágica mais que um hobby – uma paixão nas suas vidas

TEXTO Christianne Galdino

01 de Julho de 2013

Mr. Denis

Mr. Denis

Foto Helder Tavares

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 151 | julho 2013]

Entre as décadas de 1960 e 1990,
eles se encontravam semanalmente no Clube Mágico do Recife, para aperfeiçoar as técnicas e lapidar o talento, através de troca de experiências e das apresentações que promoviam. Médicos, funcionários públicos, arquitetos, pedreiros, motoristas, vendedores. Não importavam as condições socioeconômicas, a profissão, a origem, ali todos eram ilusionistas. “É a melhor atividade do mundo, porque a gente se diverte, divertindo os outros”, proclama o pioneiro dessa confraria mágica, Astor, hoje com 82 anos.

Remexendo as memórias de alguns desses personagens lendários do mundo da ilusão, descobrimos muito mais que segredos. Além dos truques e efeitos, encontramos, “no fundo da cartola”, histórias incríveis de perseverança e amor à mágica, que tornam esses pernambucanos comuns, heróis. Severino, José, Paulo, Renildo e Luiz transformaram-se em Denis, Sales, Lorax, Alan John e Lugom, e decidiram viver a serviço do encantamento. Aposentadoria? Nem pensar! A mágica é o sentido, o oxigênio e a paixão da vida desses guerreiros, que continuam fazendo o impossível acontecer.

MR. DENIS (foto acima)
Os olhos azuis brilham quando ele lembra a carta que escreveu para Morgan, no dia 1º de janeiro de 1965, dizendo que queria ser mágico. Um pouco antes, tinha visto um ilusionista chinês se apresentando na televisão. Morgan, na época morando em Ponta Grossa (PR), dava aulas de ilusionismo por correspondência. Sua vocação era mesmo a mágica, ele aprendeu não só a executar os números, como a fabricar os aparelhos. “Eu era eletricista dos teatros municipais e foi assim que aprendi técnicas de marcenaria. Vi que podia utilizar esse conhecimento para produzir meus próprios truques”, recorda o veterano, que ainda hoje tem uma fábrica artesanal. Mulher serrada ao meio, mala moscovita, caixa de espadas: Denis não sossegava enquanto não conseguia “matar o segredo”. Fã confesso do ilusionista Tihany, aproveitou todas as temporadas do circo dele no Recife para ver repetidas vezes o show, até descobrir o funcionamento de cada aparelho. Denis passou a recriar, aperfeiçoar mecanismos e arranjar soluções para melhorar os efeitos das mágicas, conquistando a admiração de muitos jovens ilusionistas, que se tornaram clientes e discípulos dos seus sábios ensinamentos.

MR. SALES


Foto: Divulgação

Autointitulado “o mágico dos dedos de marfim”, ele teve seu primeiro encontro com o mundo da ilusão ainda na adolescência. “Quando vim de Gravatá para o Recife, frequentava muito o Mercado de São José. Lá, aprendi os primeiros truques, observando alguns camelôs. Comecei a trabalhar, formando as rodas para eles atuarem”, explica Mr. Sales. O menino franzino e ágil ganhou a simpatia dos mais populares comerciantes e artistas de rua das redondezas, dentre eles o embolador Preto Limão, o vendedor de remédios Garganta de Aço, e o mágico Alegria. Um dia, ele assistiu à apresentação dos principais nomes do Clube Mágico e decidiu integrar o grupo. Motorista de ônibus da empresa Itapemirim, Sales conseguiu articular, em 1977, uma viagem a São Paulo, onde participou do Quanto vale o show?, programa de calouros de Sílvio Santos. “Apresentei um número com um pato vivo e uma espécie de caixa de madeira. Foi um sucesso tão grande, que a direção me sugeriu arranjar uma transferência da empresa para São Paulo, e ficar me apresentando semanalmente no programa”, conta Mr. Sales, que, por causa da família, decidiu permanecer no Recife.

LUGOM


Foto: Divulgação

O começo dessa história é, no mínimo, curioso. Há cerca de 70 anos, lá para as bandas da zona rural de Garanhuns, era difícil de avistar até o vizinho mais próximo, tal a distância entre os sítios. Eis que, um dia, naquele lugar esmo, aparece um mágico! O menino Luiz, curioso que era, tratou de juntar gente e doações para o artista poder apresentar seus números. “Me ofereci para ajudar nas mágicas e até hoje me lembro dele mostrando o truque do funil”, recorda Lugom, que, se pudesse, teria aceito o convite do mágico e seguido estrada com ele. Anos depois, ele reencontrou a mágica no Recife, através dos espetáculos de Alegria, um artista popular que se apresentava na Pracinha do Diario e tinha um circo armado no Bairro de Afogados. Com a turma do Grêmio Literário do colégio, ele promovia um sarau mensal no teatro da Igreja da Torre. Certo dia, teve uma surpresa: “Meu colega José Passos avisou que, no final da apresentação, ele ia mostrar uma novidade. Era um número de mágica. Esperei ansiosamente o fim do show para saber onde e como ele tinha aprendido aquele truque. Então, ele me deu o endereço da Escola Brasileira de Arte e Cultura (EBAC), instituição paranaense que ministrava um curso de mágica por correspondência”. Também foi José Passos quem levou Lugom ao Clube Mágico do Recife, no qual aprendeu muito com a experiência de Astor, Lorax, Maraza, Leumas e do próprio colega, que agora era o mágico Nagrom (o nome, Morgan escrito ao contrário, foi uma homenagem ao professor da EBAC). Anos mais tarde, Lugom foi nomeado presidente do clube e organizou, junto aos membros, alguns festivais de mágica. No currículo, “o mágico da garotada” acumula atuações com o Teatro Lobatinho, o palhaço Chocolate e inúmeras viagens. Aos 78 anos de idade, e fazendo questão de manter o figurino tradicional, os pombos e o coelhinho, Lugom apresenta seu repertório clássico com invejável vigor físico. Ele revela o segredo: “Pratico caminhada diariamente e faço uma sequência de 90 exercícios para as mãos. Na minha idade, é preciso treinar todo dia. E eu não quero parar nunca”.

ALAN JOHN
Ainda morando em Barreiros, ele viu na televisão do vizinho a apresentação de um ilusionista e decidiu: “Quero ser mágico”. Pouco tempo depois, Renildo estaria no Recife, trabalhando como ascensorista em um edifício da Rua Frei Caneca. Naquela década de 1970, a Praça Joaquim Nabuco, no centro do Recife, era o lugar dos mágicos e artistas de rua. E Renildo aproveitava todos os intervalos para ir “bater ponto” na praça. Lá, ele aprendeu, vendo os truques de Gaúcho e Preguinho. Anos depois, quando perdeu a vaga de ascensorista, aprontou seu tabuleiro, nomeou-se Mágico Renner e voltou à Praça Joaquim Nabuco para vender seus truques. “Muitos trabalhavam lá. Tinha o Professor Petro, o Carlos Sapatão, Nilton, Max D’ha”, lembra Renildo, que logo passou a frequentar as reuniões do Clube Mágico. Apaixonado pela manipulação, ficou fã do mágico Eric e de Mr. Sales, com quem mantém amizade até hoje. Funcionário público da Funase, há 26 anos, ele deixou o tabuleiro de lado, mas continua se dedicando ao ilusionismo. Agora, com o nome de Alan John, ele afirma categórico: “Tudo que tenho devo à mágica”.

LORAX
Paulo Garcia formou-se em Medicina em 1965 e foi trabalhar no interior. Na Casa de Saúde Manuel Messias, em Escada, conheceu o colega médico José Laércio do Egito (Faraó Keops), que o iniciou na especialidade à qual dedicaria a sua vida: a arte mágica. “Nos momentos mais tranquilos dos plantões, ele me ensinava truques com baralho”, recorda. Chegou ao clube e aproveitou todas as oportunidades para aprofundar conhecimentos e adquirir um precioso acervo de aparelhos de mágica. “Depois de estudar algumas técnicas, decidi me dedicar ao mentalismo e às mágicas de salão”, conta o médico, que se tornou referência no ilusionismo em Pernambuco. Já batizado de Mágico Lorax (que é o nome de um ansiolítico, e ele escolheu por gostar da sonoridade), esteve presente em importantes eventos do circuito internacional como o FISM de Paris, em 1973, e o de Viena, três anos depois. Também na década de 1970, editou e distribuiu o boletim informativo mensal Maginotas, e mantém até hoje um blog, segundo ele, para facilitar a comunicação com os amigos mágicos de todo o Brasil, principalmente depois que decidiu ir morar em Porto de Galinhas. 

CHRISTIANNE GALDINO, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural pela UFRPE.

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