Pensando na dificuldade de uma adaptação, a escolha do poema de João Cabral de Melo Neto pode ser considerada desde o início um acerto. Além de conter um fio narrativo claro, o que dá à história personagens e um desenvolvimento lógico, Morte e vida severina é todo composto por versos em formato de diálogo ou discurso, permitindo que o texto seja inserido no balão dos quadrinhos, sem a necessidade de se cortar parte da obra ou de transcrever descrições de cenário.
Assim, a concisão e controle do poema são um ponto libertário para a adaptação. Miguel pôde representar livremente sua visão poética dos cenários do Sertão, do Agreste, da Zona da Mata e da capital do Estado, acrescidos de humanidade e crueldade, a partir do uso progressivo de linhas paralelas e sobrepostas, no belo traço do pernambucano.
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Na busca por ser didático – claramente uma das intenções da publicação - sem ser óbvio, o autor representa com propriedade os personagens. No momento da apresentação de Severino, no início do poema, Miguel desenha um carpinteiro comum, cartunesco, mas com o rosto que sugere as marcas da vida severina que é obrigado a levar. Os outros Severinos, “iguais em tudo e na sina”, também aparecem, com o mesmo rosto e os mesmos traços, ainda que exista alguma sutil diferenciação entre cada um deles, que é difícil de descrever – e é esse o exato sentido do adjetivo “severino” que João Cabral cria na sua obra.
Personagem tão importante quanto o retirante Severino é a Morte severina. A representação original de um esqueleto coberto com um manto preto e carregando uma foice é habilmente adaptada ao cenário da história. O rosto não traz um crânio humano, mas, sim, bovino, referência à imagens dos boi que falecem famintos e esturricados na seca. Nas mãos, a Morte leva machados ou espingardas, também assumindo o papel de mulher, padre e até do balseiro Caronte, da Divina comédia.
As imagens que Miguel acrescenta à história, sem deturpá-la, não se encerram aí. Severino encontra uma rezadeira, que sobrevive à custa do único mercado que nunca escasseia no Sertão, o da morte. Enquanto o diálogo entre os dois ocorre, o quadrinista mostra a senhora plantando pequenos crânios humanos e vendo esqueletos florescerem deles, representação da crueldade do seu ofício.
Por fim, Miguel também achou espaço para algumas curiosidades e homenagens. Personagens, como os coveiros e Seu José, o mestre carpina, recebem rostos baseados em figuras importantes da cultura pernambucana, como o geógrafo Josué de Castro, o sociólogo Gilberto Freyre e o ex-governador Miguel Arraes, esse encarnando a resposta final, otimista, do poema.
DIOGO GUEDES, repórter da Continente Online.