Eis o tema central do primeiro longa de ficção de Kleber Mendonça Filho: a cidade como ambiente estranho e inóspito. Antes de tudo, uma extensão do ser humano. Impertinente, o som invade e rompe a vida íntima. Condiciona subjetividades. Em determinados momentos, para além do realismo, ruídos adquirem contornos quase fantásticos, ao trazer para a consciência, em Dolby 5.1, um mal-estar que diariamente nos empenhamos em sufocar.
Em O som ao redor, passado e presente tomam forma de thriller psicológico que, aos poucos, transforma-se num western urbano de terror e vingança. A trama se sustenta em torno de moradores de uma rua de classe média do Recife, onde mais da metade dos imóveis pertence a um único dono, Francisco (W.J. Solha), mais interessado em cuidar do seu engenho, que fica numa área rural, do que prestar atenção no grupo de vigilantes liderados por Clodoaldo (Irandhir Santos), que passa de porta em porta oferecendo proteção. A violência, no entanto, não está na ameaça de roubo ou invasão. Como uma herança maldita, está entranhada nos hábitos mais comuns.
Uma característica especial do trabalho de Kleber Mendonça é fazer filmes com um arrojado desenho de som, previsto em detalhes já no roteiro: “A maior parte dos filmes usa o som só para não ficar mudo. Isso é um desperdício, pois se perde a oportunidade de fazer outro filme. Vejo o cinema sempre em dois canais, imagem e som. É curioso, no curta Recife frio não tive essa relação, porque ele é uma sátira a um tipo de produto para a TV”.
A trilha de áudio de O som ao redor é utilizada para compor campo e extracampo, um universo maior do que mostram as imagens. “O som não respeita limites impostos pelo mundo social. Muros, cercas e paredes protegem áreas privadas, mas alguém super-rico tentando curtir uma tarde na piscina não pode impedir que o som do vizinho discutindo com a namorada entre no seu território.”
Em determinada sequência, quando o velho Francisco sai no escuro da noite para um banho de mar, a luz automática que se acende em frente aos condomínios é pontuada por um dummm, grave e tenso. E quando um flanelinha risca a traseira de um carro, o ruído é bem mais estridente que o natural. Senhor de seu universo, Kleber fala sério, mas também se diverte.
“Kleber tem firmeza, uma ideia clara do que quer e domina a linguagem audiovisual. Sem um projeto específico para o som, o processo seria mais aleatório”, diz Nicolas Hallet, que, ao lado de Simone Dourado, assina a captação de som do longa. “Ele tem a função interessante de abrir o quadro. Se a câmera age de forma bastante delimitada (fecha nos atores e lugares fechados), pelo som, é possível sentir a cidade.”
Nicolas explica que duas escolas predominam no cinema: uma, voltada à produção industrial; outra, artesanal. Na industrial, o trabalho com o som geralmente fica para depois e pode ser feito por dublagem, sons adicionais e captura após a filmagem. “Dizem que, em Hollywood, 80% do som é feito assim. Mas, para mim, CD de passarinho não convence”, diz Nicolas. “Não funciona colocar som em imagens feitas em outro lugar. No cinema artesanal, procuramos fazer um banco de dados do próprio filme, uma pesquisa sonora do lugar e oferecemos o material para o montador. Isso é muito rico, pois cria um arquivo com ambiências do lugar e a marca do filme.”
Entre os projetos de Nicolas está um documentário sobre o músico suíço Anton Walter Smetak (1913-1968), que viveu os últimos anos de sua vida em Salvador e é considerado um dos pais do Tropicalismo. “Seu trabalho está ligado à música concreta, que não reconhece fronteiras entre som e imagem.”
ESTÍMULOS
No curta-metragem pernambucano A onda traz, o vento leva, o diretor Gabriel Mascaro utiliza o som de forma incomum. O belíssimo trabalho de áudio é digno de aplauso. Mas o filme vai além, ao propor ao espectador, por meio de um personagem, outras possibilidades de se relacionar com os sentidos. O personagem Rodrigo (Márcio Campelo Santana) tem problemas auditivos e, apesar disso, trabalha com manutenção de som automotivo. Mesmo sem ouvir, ele sente no corpo a vibração dos alto-falantes. À noite, dança de acordo com a música, a partir de estímulos visuais, como o movimento de outras pessoas e um curioso sistema de LEDs instalado em sua camiseta.
Por sua vez, o curta Praça Walt Disney, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, propõe-se a reorganizar os ruídos do Bairro de Boa Viagem, tendo como referência o longa de animação Fantasia (1940) e os filmes de Jacques Tati (Playtime). O resultado é musica composta com sons de buzinas, alarmes de carro e portões de garagem.
Cinema (também) é música. Para realizá-lo, é preciso senso de composição, harmonia, execução, ritmo. Não raro, diretores comparam seu ofício ao de maestro. O cineasta Andrei Tarkovski comparava o movimento de atores no plano da imagem a notas musicais dispostas na partitura. Thelmo Cristovam chama a atenção para a separação desnecessária entre trilha sonora e ruídos. Em sala de aula, ele usa um exemplo clássico para ilustrar isso: Era uma vez no Oeste (Itália, 1968), de Sérgio Leone. “Na sequência de abertura, Ennio Morricone faz uma composição só de ruídos, com o chão de madeira sendo pisado, a chegada o trem, o vento, uma mosca, as armas sendo engatilhadas.”
Na mesma época, lembra Thelmo, Morricone fazia parte do Gruppo di Improvvisazione Nuova Consonanza, que experimentava improvisações desse tipo. Seu filme preferido, no entanto, vem da Rússia: Stalker, de Tarkovski, “É um dos desenhos de som mais lindos do cinema."
ANDRÉ DIB, jornalista, pesquisador e crítico de cinema.
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