Carola Saavedra: Investigação do fazer literário
No romance 'O inventário das coisas ausentes', autora divide a narrativa em dois blocos, 'Cadernos de anotações' e 'Ficção', para remontar a história
TEXTO João Cezar de Castro Rocha
01 de Setembro de 2014
Carola Saavedra
Foto Divulgação
Uma nova forma de apresentar o novo romance de Carola Saavedra consiste em associar duas passagens do texto. Reunidas, por efeito de uma leitura-colagem, elas esclarecem o verso e o reverso do projeto literário da autora. No início do romance, na voz de um “escritor iniciante”, o leitor intui o que não deve esperar: “Eu traçava planos irresistíveis para um romance de oitocentas páginas, no qual, num trabalho de inovação de linguagem, recontaria toda a história do Brasil”. O hábil emprego do adjetivo, irresistíveis, confirma a dicção irônica, iluminando o ponto de vista adversário.
Por isso, nas últimas páginas de O inventário das coisas ausentes, o pacto ficcional se faz presente: “A história acaba quando somos obrigados a nos livrar dela, para que outro a compreenda e coloque em seu texto uma vírgula ou um ponto final” (120). Cabe ao leitor escolher a pontuação, claro está. Tudo se passa “como se todas as histórias precisassem de uma só história para existir” (121).
No final do livro, a autora literalmente suspende a narrativa no momento de máxima tensão, obrigando o leitor a concluir a trama por si só. Ora, se o efeito é recorrente na obra de Carola Saavedra, constituindo mesmo o norte de sua literatura, em O inventário das coisas ausentes, a autora surpreende, em lugar de contentar-se com a repetição do procedimento bem-sucedido. Além de radicalizar seu projeto, ela atinge um domínio novo das estruturas textuais e da depuração da linguagem.
Vejamos: aquelas duas opções não se apresentam como oposições binárias, como acredita certa crítica, ainda hoje encerrada no período heroico do Modernismo. O projeto que “recontaria toda a história do Brasil” não exclui o “trabalho de inovação de linguagem”. Contudo, e como se fosse um inesperado parangolé de palavras, o texto de Carola Saavedra exige, cada vez mais, que o leitor se transforme em coautor da trama. Ou: como se fosse um dos bichos de Lygia Clark, a exigir o toque desestabilizador do “espectador”, que deve aprender a olhar na ponta dos dedos.
O inventário das coisas ausentes compõe-se de duas partes e a força de sua escrita depende do elaborado jogo de espelhos entre elas. A primeira, Caderno de anotações corresponde fielmente ao título. O leitor tem acesso ao laboratório de temas e formas de linguagem experimentados pela autora, como o atleta que aquece os músculos antes do exercício; aliás, imagem que alinhava as duas partes. Daí, a segunda, Ficção, apesar de constituir uma unidade própria, potencializa diversos elementos previamente esboçados. Isto é, a história traumática entre pai e filho que sustenta a segunda parte se apropria dos diversos estudos de relações amorosas e familiares esboçados na primeira parte.
Essa breve descrição pode dar uma ideia limitada do texto. Parece que o Caderno de anotações reduz-se ao papel de um andaime que permanecesse de pé, mesmo depois do término da construção. A imagem que me ocorre é antes a arquitetura instigante do Centre Georges Pompidou. A fachada do edifício incorpora as estruturas metálicas, como se fossem andaimes teimosamente integrados ao prédio. Porém, tais estruturas possuem funcionalidade, já que a exposição das vísceras do museu amplia o espaço disponível no seu interior, além de permitir a circulação dos visitantes. Assim, a parte “externa” é elemento formal indissociável da concepção arquitetônica.
Exatamente como as duas partes do romance. Tal disposição é tornada forma literária através da elaboração de uma frase peculiar, cujo ritmo ata com êxito as pontas do texto.
Transcrevo um exemplo: “Vinte e três anos, por que agora, depois de vinte e três anos?, a pergunta ressoando em minha mente, ele como se me ouvisse, te chamei porque ao contrário das previsões de Luiza, eu estou morrendo, ele anunciou”. O deslizamento de pontos de vista diversos – descrição, fluxo de consciência, diálogo – é notável e já constitui uma dicção característica da autora.
Peço que o leitor verifique por si só: busque, na página 91, o emprego mais radical desse procedimento na frase que principia “Mas quem falou em casamento?,” e continua por 15 linhas, recorrendo a uma pontuação própria, mas não idiossincrática, pois corresponde perfeitamente ao movimento da cena. De igual modo, a primeira parte se transforma imperceptivelmente na segunda, pois sua última palavra, “ficção”, desdobra-se na história que segue. Mas não conclui: o desfecho dependerá sempre de um gesto do leitor.
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA, ensaísta, crítico e professor de Literatura Comparada da UERJ.