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Barro, pensamento, corpo e ação

Evento idealizado pelo artista Carlos Mélo, que acontece em Caruaru, lança olhar contemporâneo sobre essa tradicional matéria-prima

TEXTO Mariana Oliveira

01 de Abril de 2014

A mostra pode ser entendida como mais uma obra do seu projeto 'Corpo. Barro.Oco'

A mostra pode ser entendida como mais uma obra do seu projeto 'Corpo. Barro.Oco'

Foto Beto Figueiroa/Divulgação

O artista plástico Carlos Mélo nasceu no município de Riacho das Almas, no agreste pernambucano, situado a 25 km de Caruaru. Por isso, parte importante da sua formação e linguagem poética se desenvolveu nessa cidade – referência no interior, especialmente pelo comércio, pelo forró e pelos mestres da cerâmica.

Foi a partir dessa forte relação com a região e da percepção da falta de investimento e de um olhar para a sua identidade cultural, que o artista concebeu e planejou a realização da I Bienal do Barro do Brasil, que tem início no próximo dia 12 e segue em cartaz até o dia 19 de maio, no galpão da antiga Fábrica Caroá, em Caruaru, com o tema Água mole, pedra dura. Engana-se quem imagina tratar-se de uma mostra dedicada ao barro. O foco do evento é lançar um olhar contemporâneo sobre ele.

Segundo Carlos Mélo, a palavra que melhor definiria a bienal é transculturalidade. “Entendemos o barro como plataforma de ação para, além de levar a arte para aquela região, usá-lo como conceito ‘trans’, um espécie de atravessamento, construindo um grande e potente encontro entre este material e a arte contemporânea”, explica. Um dos objetivos é institucionalizar a cerâmica como a marca do Agreste, assim como o cangaço e o maracatu rural marcam o Sertão e a Zona da Mata, respectivamente. “A palavra agreste tem como anagrama resgate, e é esse processo de ‘extração’ que impulsiona os princípios conceituais da bienal”, resume o artista.

Mesmo tendo sido autor do projeto, ele optou por não comandar a curadoria, convidando para isso o carioca Raphael Fonseca. “Achei que não deveria ser eu a fazer a seleção. Era importante trazer um olhar de fora”, pontua Mélo. O curador selecionou 16 artistas – Armando Queiroz (PA), Clarissa Campelo (ES), Daniel Murgel (RJ), Deyson Gilbert (PE), Ivan Grilo (SP), Jared Domício (CE), Jorge Soledar (RS/RJ), José Paulo (PE), José Rufino (PB), Laerte Ramos (SP), Leila Danziger (RJ), Luísa Nóbrega (SP), Márcio Almeida (PE), Marcone Moreira (MA), Nadam Guerra (RJ), Preciliana Nobre (AL/PE) –, cujos trabalhos passeiam pelos mais distintos suportes (vídeos, pinturas, performances, esculturas, instalações).

Em muitas das obras, o barro não está presente fisicamente, mas é utilizado como referência, como ponto de partida. O próprio Carlos Mélo costuma apontá-lo como matéria-prima seminal de sua obra, mesmo sem nunca ter feito uso direto do material. E são justamente essas investigações conceituais que acrescentam uma “nova substância” para a matéria, que a bienal pretende trazer.

A cerâmica e as práticas artesanais comumentemente associadas ao material vão aparecer em momentos específicos, quando forem ativadas pelas discussões em curso. Segundo o idealizador, foi difícil fazer com que todos compreeendessem que não se tratava de uma feira de artesanato, com foco exclusivo nesse tipo de produção.

Como usualmente acontece com as bienais, a exposição foi dividida em dois núcleos. O primeiro, dedicado aos artistas contemporâneos e, o segundo, histórico, em homenagem ao Mestre Vitalino e ao legado dele no Alto do Moura, o maior centro de artesãos das Américas. A segunda etapa ocupará a Galeria Mestre Galdino, no Sesc Caruaru, só a partir do dia 14, levando para a cidade, pela primeira vez, os registros do artista caruaruense feitos pelo fotógrafo francês Pierre Verger. Nesse espaço, haverá um diálogo com obras da artista Preciliana Nobre, de Santana de Ipanema (AL), que, desde 2012, desenvolve uma pesquisa em cerâmica popular primitiva no Alto do Moura, com olhar no local, na produção cerâmica contemporânea e nas obras de Vitalino e Galdino. A galeria vai receber reproduções de latas de cerveja feitas em cerâmica, numa alusão à tomada do Alto do Moura, durante os festejos juninos, por uma marca de bebida que patrocina o evento.

O núcleo contemporâneo será instalado no galpão, com 4.800 m2, onde funcionou a fábrica de cordas Caroá. A escolha pelo espaço se deu por diversos motivos, entre eles o desejo dos organizadores de promover uma espécie de acerto de contas da cidade com sua cultura e sua história. A fábrica foi fundamental no desenvolvimento de Caruaru – a primeira vez que a cidade teve energia elétrica foi por conta do gerador da empresa. “Apesar de sua relevância, esse espaço é subutilizado, as pessoas nem sabem da sua existência, não conhecem a história da própria cidade. Queremos estimular a curiosidade da população em conhecer os centros culturais e museus locais que quase ninguém conhece”, explica Carlos Mélo.

ANAGRAMA
A Bienal do Barro pode ser compreendida como uma obra que complementa uma pesquisa desenvolvida por Carlos Mélo nos últimos anos. Desde 2010, o artista se voltou para a região onde nasceu, e criou um anagrama, cuja articulação aciona discursos em torno do barro, da arte contemporânea e do barroco. Como o uso do corpo é algo recorrente em seu trabalho, ele desenvolveu a ideia de Corpo.Barro.Oco, para gerar uma sequência de experiências sensíveis, a partir de articulações distintas.

Dentro desse conceito, que se materializou em diversas obras, ele reuniu outros artistas e propôs leituras do tema. Com o apoio do Sesc, realizou, em 2012, na galeria da instituição, em Caruaru, a mostra Barro.Oco, com a participação de José Paulo, Jared Domício e Bruno Viera. Enquanto José Paulo apresentava seus trabalhos com barro, os outros dois convidados traziam vídeos que se relacionavam ao conceito, sem fazer uso da matéria-prima. Depois, foi a vez de Belo Jardim, em 2013, receber a segunda etapa, com a mostra Corpo.Barro, quando o artista Armando Queiroz apresentou sua obra em diálogo com os trabalhos de Lorane Barreto, Bruna Raphaella Férrer e Pierre Tenório.

Haveria uma terceira etapa em Garanhuns, que completaria as combinações possíveis. Nesse meio tempo, Mélo conseguiu o apoio do Funcultura para realizar a I Bienal do Barro do Brasil e terminou optando por fechar o ciclo novamente, em Caruaru. “Como surgiu de um projeto artístico, o anagrama Corpo.Barro.Oco, a bienal não é apenas um evento, mas uma obra de arte, na medida em que cumpre uma função artística e social de resgate da cultura local, e também de implementar para o futuro uma abordagem diferente dessa cultura, transcodificando o barro matéria em pensamento e ação”, conceitua o artista. 

MARIANA OLIVEIRA, editora-assistente da revista Continente.

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