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Afrofuturismo: Ficção científica na cultura negra

Movimento surgido nas décadas de 1950 e 1960 reverbera hoje e apresenta formas diferentes desse grupo social se relacionar com a própria negritude na música, no cinema, na literatura e na moda

TEXTO Victória Ayres

01 de Janeiro de 2016

Grafiteiro e músico Rammelize usa novas tecnologias no hip hop

Foto Divulgação

De ambos os pulsos e dos saltos do seu tênis, múltiplas labaredas de fogo são cuspidas. Cabeças de bonecas presas na cintura, dependuradas na altura da virilha, soltam fumaça de suas bocas. Junto com essa couraça, um sistema de som feito com parafusos, fios e caixas de som. A roupa híbrida de Rammellzee, grafiteiro e músico conhecido por usar novas tecnologias de som dentro do hip hop, ao mesmo tempo em que carrega signos do futuro e suas tecnologias, possui marcas do passado propositalmente escondido de todo um povo.

A ficção científica, cheia de geringonças, estruturas sociais e mundos distintos dos que vivemos hoje, tem um propósito bem-definido dentro do afrofuturismo. Surgido na década de 1960, esse movimento cultural abarcou a literatura, o cinema, a música e a moda, manifestando-se até os dias de hoje. O sincretismo entre a ficção científica hi-tech e aspectos mais tradicionais da cultura negra, em especial, vindos dos vários países da África, tingiram de prata e cobre o trabalho de artistas como Octavia Butler, Sun Ra e John Akomfrah.


Sun Ra misturou funk, soul e jazz a sons produzidos por sintetizadores. Foto: Divulgação

Ficção científica é sobre vislumbrar o novo, supor um futuro e, para os negros, nunca foi fácil vislumbrá-lo. De acordo com o escritor Samuel R. Delany, “a razão histórica pela qual nós, negros, sempre fomos pobres em termos de imagens do futuro é que, até recentemente, fomos sistematicamente privados de qualquer imagem do nosso passado”. Utilizando os paradigmas da diáspora africana, o afrofuturismo oferece possibilidades de futuro em que o povo negro crie as próprias realidades, livre da segregação racial, do apagamento e da assimilação cultural forçada. Livre, principalmente, da consciência dupla decorrente do sofrimento causado por existir em um mundo que não lhe pertence, de ser abduzido do seu lugar e não ter acesso ao que esse novo lugar pode oferecer de bom.

O olhar duplo, explicado pelo estudioso da cultura afrodiaspórica no século 20, W. E. Dubois, é a sensação de sempre se observar com os olhos de outros; negros se enxergando com olhos de brancos e, consequentemente, se vendo com desprezo, indiferença e escárnio. Entretanto, há opiniões divergentes sobre as consequências da consciência dupla de Dubois. DJ Spooky, músico e teórico da cultura negra, afirma que a identidade ocasionada pelo olhar duplo também é dupla, estando assim aberta a transdisciplinaridades e mixagens. O mundo digitalizado trouxe com ele as ferramentas para a criação de novas estéticas. Jazz com sintetizadores, filmes com frames aparentemente desconexos e recheados de referências simultâneas ao passado e ao futuro.

A mitologia dos povos africanos sempre teve um papel fundamental nesta cultura e, após serem “abduzidos” da sua terra, os negros foram paulatinamente perdendo contato com essa ancestralidade. Então, vários artistas do afrofuturismo resgataram o mito, não como tradição a ser superada, mas como força de transformação e resistência cultural. Sun Ra, o precursor do movimento na música, junto com sua Arkestra, grafia modificada de orchestra, mesclou o jazz com a música eletrônica ainda na década de 1950, ficando conhecido por seu “lirismo cósmico”.


Na trilogia Xenogenesis, Octavia Butler explora temática da alienação.
Imagem: Divulgação

Nascido com o nome de Herman Poole Blunt, Sun Ra afirmava ser de outra galáxia e que teria vindo à Terra para trazer palavras de amor e sabedoria, enquanto utilizava a estética da cultura egípcia nas suas roupas (Sun vem de sol, em inglês, e Ra é o deus-sol, dentro da cosmogonia do Egito antigo). Suas experimentações musicais serviram de inspiração para gerações futuras de músicos e artistas afro-americanos.

Misturando funksoul e jazz com sons produzidos por sintetizadores e por softwares de música, a cantora Janelle Monáe é um exemplo de como o afrofuturismo continua vivo na música. Nascida em Kansas, Janelle está bem-inserida dentro da música pop e, após um EP e dois álbuns, é uma das vozes que falam abertamente sobre as dificuldades do povo negro dentro dos Estados Unidos, apoiando de forma explícita o movimento Black Lives Matter, que começou após mortes brutais decorrentes de violência policial terem ocorrido num espaço curto de tempo.


Da nova geração, a cantora Janelle Monáe traz o futurismo nas composições.
Foto: Divulgação

Nas letras de suas músicas, embaladas com funk soul, ela se refere a um alter-ego vindo do ano de 2719, Cindi Mayweather, uma androide que foi sentenciada à desmontagem por se apaixonar por um humano. Ela se utiliza da imagem do androide para falar do Outro, com influência de vários ritmos negros e mensagens sobre autoaceitação enquanto ferramenta de luta. Na sua música Q.U.E.E.N., com participação de Erykah Baduh, Janelle critica a condição atual do negro e instiga seus pares a “pregar”: “Seremos nós uma geração perdida do nosso povo/ nos somam a equações, mas nunca nos verão como iguais (…) Minha coroa é muito pesada como a da rainha Nefertiti/ Me devolva minha pirâmide/ Estou tentado libertar Kansas (…) Enquanto você vende drogas, nós venderemos esperança/ Nós estamos nos erguendo, você tem que aceitar, tem que saber lidar/ Você será uma ovelha eletrônica?/ Meninas elétricas, vocês dormirão?/ ou pregarão?”.

TRADIÇÕES E DIÁSPORAS
A metáfora do Outro apresentada nas letras de Janelle Monáe está presente nos clássicos da escritora estadunidense Octavia Butler, conhecida por não apenas abordar a questão racial, mas também de gênero nos seus livros. A experiência negra enquanto ficção científica é explorada a partir do deslocamento físico e cultural causado pela diáspora, que remete novamente ao corpo estranho, àquele que estaria deslocado do seu lugar. Seu trabalho mais conhecido é a trilogia Xenogenesis, em que a temática da alienação é explorada a fundo em realidades nas quais humanos são forçados a conviver com outras espécies, e a abordagem dos seres geneticamente modificados é constante.

A nigeriana-estadunidense Nnedi Okorafor é mais explícita no resgate às tradições africanas do que Octavia. Num dos seus trabalhos mais conhecidos, Zahrah, the windseeker, a escritora conta a história de uma adolescente nigeriana que vive no reino de Ooni e faz parte do grupo de pessoas que possui poderes estranhos, desconhecidos da própria adolescente. O futuro místico e extraterrestre coexiste com o passado tradicional nessa obra de Nnedi.


A coexistência de múltiplas e diferentes realidades está na obra do cineasta John Akomfrah. Foto: Divulgação

A coexistência de múltiplas e paralelas realidades está presente também na produção cinematográfica, com cineastas como John Akomfrah utilizando o audiovisual para abarcar os variados universos presentes da cultura negra. Parte do Black Audio Film Collective, O último anjo da história, de 1996, conecta o afrofuturismo aos preceitos mais tradicionais do folclore africano, criando o que o próprio diretor chama de memória racial digitalizada através de hiperlinks visuais e intertextualidade, ligando espaços geográficos, textos e pessoas distintas. O filme tem início com a figura do bluesman Robert Johnson e segue com imagens não lineares, mostrando fragmentos de outros artistas, tais como o já citado Sun Ra, com trechos documentais e outros ficcionais.

A estética plástica tanto presente nos filmes como no corpo dos cantores do movimento deixaram marcas que foram transpostas também para a moda. O corpo negro, já visto como estranho pela perspectiva branca e eurocêntrica, se apropria dos adornos e estilos mais tradicionais, aliados a roupas futuristas com aparências “extraterrestres”. Pinturas que remetem à ancestralidade comunal, piercings inusitados, acessórios metálicos, roupas longas e sobrepostas com estampas mais fortes – tidas como exóticas pelo olhar branco – e penteados próprios para o cabelo crespo têm proliferado e bebem na fonte do afrofuturismo.

Afropunk Festival, que aconteceu em Nova York em agosto de 2015, foi um ambiente em que parte do seu público manifestou essa estética. Uma das suas principais atrações, Grace Jones, se apresentou coberta de pinturas tribais, com grandes ornamentos, semelhantes a penas, presos a sua cabeça. Em um momento em que a “outridade” está sendo posta em cheque e os sujeitos tidos como abjetos estão falando por si, o afrofuturismo apresenta uma potência dentro da arte que permite ao povo negro formas diferentes de se expressar e se nomear, ramificando a identidade negra e pondo em cheque a discriminação racial. 

VICTÓRIA AYRES, estudante de Jornalismo e estagiária da revista Continente.

 

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