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A simbiose entre a poética cabralina e o rio

TEXTO Paulo Carvalho

01 de Fevereiro de 2013

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 146 | fevereiro 2013]

Num período de cinco anos
, João Cabral de Melo Neto publicaria seus três mais importantes poemas sobre o Capibaribe: O cão sem plumas (1950), O rio ou relação de viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1953) e Morte e vida severina (1955). Neles, como afirma o crítico Alexandre Shiguehara em Ao longo do rio (Hedra, 2010), estudo dedicado à tríade cabralina, as águas e os “homens de lama” entram em “identidade simbiótica”. Também neles, especialmente nos dois últimos poemas, temos relatos de viagens, em que se sobressai o “registro severo” de Cabral, como bem define o filósofo e crítico literário Benedito Nunes, citado por Shiguehara.

Esse indissociável agenciamento entre João Cabral e o Capibaribe continua incitando olhares críticos e motivando novas edições com a poesia do pernambucano. No final de 2012, por exemplo, a Alfaguara, em parceria com a Saraiva, lançou O rio, livro organizado por Inez Cabral, filha do poeta, e prefaciado pelo português António Lobo Antunes. O título reapresenta as três obras e mais 11 poemas sobre o Capibaribe (a mesma editora havia lançado, em 2007, O cão sem plumas, com o poema que lhe dá título, além de suas quatro primeiras obras, Pedra do sono, Os três mal-amados, O engenheiro e Psicologia da composição).

Ainda na esteira da simbiose entre a poética cabralina e a paisagem do rio, a Companhia Editora de Pernambuco lançará, em breve, Capibaribe – mesmo rio: outra gente, fruto de reportagem das jornalistas Fabíola Perez Corrêa e Elaine Ortiz. As autoras refizeram a epopeia de Severino, levando em consideração a postura adotada por Cabral de modesto “escrivão”. Se era verdade que ele produziu imagens secas “pela ausência de idealização da realidade”, para citar Benedito Nunes mais uma vez, então seria possível reconstituir o roteiro real do personagem mais conhecido de Cabral.

Segundo as jornalistas, o trajeto do livro foi definido a partir de análise crítica da obra Morte e vida severina; do levantamento de dados junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); de um estudo sobre a geografia e a história de Pernambuco e, por fim, do cotejo entre o mapa rodoviário e o mapa da bacia do rio. Algumas passagens do texto de Cabral revelaram quais os possíveis municípios percorridos pelo personagem a partir do indício mais evidente que o autor explicita: Severino segue, em sua epopeia, a trilha do Rio Capibaribe.

No entanto, como a bacia é responsável por banhar uma área de 7.454,88 km² (7,58% da área do estado) abrangendo 42 municípios de Pernambuco (28 no Agreste; 10 na Zona da Mata; 4 na Região Metropolitana) e, como na narrativa de João Cabral, os nomes das cidades pelas quais Severino passa não são revelados – exceto Toritama e o Recife –, as autoras contam que se fez necessária a releitura do texto com esse enfoque. Foram considerados apenas os municípios que são banhados diretamente pelo Capibaribe, guia de Severino, e não por afluentes. Dessa forma, Poção, Jataúba, Santa Cruz do Capibaribe, Toritama, Salgadinho, Limoeiro, Carpina, Lagoa de Itaenga, São Lourenço da Mata, Camaragibe e o Recife seriam as 11 prováveis cidades em que o personagem esteve e, por isso, foram elas as visitadas no ano de 2008. As referências diretas ao poema de João Cabral surgem textualmente no prefácio e em pequenas epígrafes antes de cada capítulo, segundo as jornalistas “para que o leitor tenha em mente a inspiração, mas que mergulhe com as narradoras na nova realidade experimentada”.

“A obra de João Cabral foi o ponto de partida para a nossa reportagem. Antes de ir a campo, fizemos uma leitura minuciosa de Morte e vida severina e estudamos os principais momentos da vida do autor. Durante a viagem, a referência de João Cabral serviu para nortear geograficamente nossa trajetória e como parâmetro de comparação entre épocas completamente distintas do ponto de vista econômico e social. Em nossas estadas nas cidades, muitas passagens nos remeteram à história ficcional do Severino substantivo. Quando chegamos à Toritama, por exemplo, não demoramos a perceber um pequeno grupo de pessoas conduzidas a um velório. Na realidade, assim como na ficção, a morte se fez presente”, afirma Fabíola Perez à Continente.

Mas, para a jornalista, o importante mesmo foi poder registrar as transformações da região representada por Cabral. “Enquanto a obra ficcional relatava as condições enfrentadas pelos nordestinos para sobreviver à fome e a falta de empregos, procuramos transcrever a realidade que saltava aos olhos: cidades marcadas por um histórico de pobreza, mas que encontraram um meio de desenvolver sua economia”, conclui Perez. 

PAULO CARVALHO, jornalista e mestre em Comunicação pela UFPE.

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