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A geração 1980 esquadrinhada

Livro 'Cartografia das artes plásticas no Recife dos anos 1980' traça panorama do cenário do período, usando como ferramenta o depoimento dos próprios agentes

TEXTO Pethrus Tibúrcio

01 de Julho de 2014

Integrantes dos coletivos Quarta Zona de Arte, Carasparanambuco e Carga e Descarga, no Bairro do Recife

Integrantes dos coletivos Quarta Zona de Arte, Carasparanambuco e Carga e Descarga, no Bairro do Recife

Foto Acervo José Paulo/Divulgação

Em uma mesma cidade, cabem inúmeros mapas. Mais do que pelos bairros e ruas institucionalizados, é através de nossas relações afetivas com os lugares que desenhamos nossa visão zenital da cidade na qual vivemos. É isso que a historiadora Joana D’Arc de Sousa Lima faz em Cartografia das artes plásticas no Recife dos anos 1980: deslocamentos póeticos e experimentais (Editora Universitária – da Universidade Federal de Pernambuco).

“É uma cartografia de memória para nós que somos estrangeiros na nossa própria cidade”, diz a autora. Trabalhar com a ideia de cartografia foi uma decisão metodológica que desenvolveu, principalmente a partir das 44 entrevistas (todo o acervo de foto, vídeo e áudio que recolheu será doado à UFPE) que fez com artistas representativos do período. No livro, Joana descobre os lugares de sociabilidade, os bares, os espaços de formação, exibição e produção artística.

Vinda de São Paulo, ela começa o trabalho como pesquisadora no início dos anos 1990, sob a influência do crítico de arte Frederico Fonseca Morais, quando começa a estudar Artes Plásticas. Sua inquietação com o objeto tratado se dá na chegada ao Recife, no início dos anos 2000, ao ser apresentada aos artistas contemporâneos da cidade, a exemplo de Rinaldo Silva e Cavani Rosas. Em conversas informais, eles rememoravam a juventude sem esconder a nostalgia. As críticas ao cenário atual – que, para alguns, cria uma camisa de força chamada “arte contemporânea” – apareciam constantemente em comparações a outros momentos, quando a arte era menos institucionalizada e os salões eram referência de legitimação. Para Joana, “o livro é uma forma de pensar os anos 2000 a partir do passado”.

Há, ainda, uma clara tentativa de negar uma historiografia anterior sobre a época, ou, pelo menos, de romper com um rótulo que afirma a década de 1980 como os anos do “retorno à pintura”, sem dar conta de toda a produção que era feita.

Como conta um relato da doutora em História da Arte Glória Ferreira, que integra o livro, essa “nova pintura” esteve relacionada a uma das principais características da época, que é justamente o seu caráter experimental. A tradição pictórica incorporava elementos conceituais, usando recorrentemente a linguagem dos quadrinhos e do cinema, citando a História da Arte, a História e acontecimentos políticos. Além disso, artistas como o hoje reverenciado Paulo Bruscky chamaram a atenção do público e da crítica com intervenções em espaços abertos.

Na época, as mostras deixaram de ser apenas um mecanismo de exibição, estritamente, para servir de espaço de apresentação, trazendo ao público ações como performances e happenings.


O Brasil é o meu abismo, de Daniel Santiago.
Foto: Jomard Muniz de Britto, acervo Daniel Santiago/Reprodução

PROTAGONISMOS
Percebendo a ligação entre arte e política como uma tradição em Pernambuco e reconhecendo o contexto histórico de redemocratização do recorte da pesquisa, esses temas são recorrentes nas entrevistas e nas fotografias reunidas no livro. Uma das obras de destaque nesse contexto é agora tema do pós-doutorado de Joana D’arc, a série de arte-postal de Raúl Córdula intitulada O país da saudade, na qual ele enviava folhas de papel ofício pelo correio e esperava intervenções, dentro do tema que o título sugere, a serem devolvidas. Com o sentimento de urgência diminuído em relação às décadas passadas, a política começa a se apresentar mais como uma incorporação das obras e se afastar de estratégias mais panfletárias.

Três grupos são protagonizados e ganham destaque no livro: Carasparanambuco, Formiga Sabe que Roça Come e Quarta Zona de Arte. Eles são exemplos da criação de uma autonomia e independência profissional que possibilitavam a inserção no campo, e permitiam o caráter inovador e experimental que marcava os grupos. O primeiro foi fundado em 1986, por oito jovens artistas em início de carreira, a fim de se inserir no cenário das artes plásticas e fundar eventos relacionados ao assunto na cidade. O livro traz entrevistas com alguns dos integrantes, como Rinaldo Silva, Marcelo Silveira e Maurício Silva, este último fundador e apontado como líder do grupo.

O Formiga Sabe que Roça Come nega a categoria de “grupo”, uma vez que os integrantes se reuniram para a elaboração de um evento itinerante (em locais não convencionais, com a proposta de difundir a arte) e que previa várias exposições. Diferentemente do Carasparanambuco – que buscava um reconhecimento em lugares consolidados que garantissem o profissionalismo –, o Formiga buscava locais não institucionalizados. O Quarta Zona, ateliê coletivo e espaço cultural que ficava situado na Avenida Marquês de Olinda, tinha uma forte atitude política, fundando brigadas e discutindo Teoria da Arte.

Quando perguntada sobre as possíveis similitudes entre os coletivos da época, Joana D’Arc afirma: “O ponto em comum é que eram todos jovens, no Nordeste do Brasil – o que é importante –, que desejavam ser artistas legitimados e legitimadores. Eles produziram sua própria identidade e a levaram diretamente para a imprensa. Não havia essa mediação de hoje, de produção, assessoria de imprensa etc.”.

Embora esses agrupamentos ganhem destaque, o panorama é maior, desvendando a repercussão dos artistas locais nesse cenário, a relação com a imprensa e com a crítica, as influências de grandes nomes na produção recifense, e também o contrário. O olhar crítico, mais do que um simples relato, torna Cartografia das artes plásticas no Recife dos anos 1980: deslocamentos póeticos e experimentais um livro importante, não só como um resgate histórico, mas como fundamental aparato teórico para uma análise da produção, e seuslugares de inserção, realizada hoje. 

PETHRUS TIBÚRCIO, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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