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A afirmação dos indivíduos na sociedade midiatizada

O boom das câmeras digitais vem colaborando para expandir o desejo de visibilidade e de engendrar uma nova forma de entendimento da memória

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Setembro de 2011

Em 'Pacific', o cineasta Marcelo Pedroso se apropriou dos vídeos feitos por passageiros em um cruzeiro para Fernando de Noronha

Em 'Pacific', o cineasta Marcelo Pedroso se apropriou dos vídeos feitos por passageiros em um cruzeiro para Fernando de Noronha

Foto Divulgação

A melhor maneira de começar esta matéria é propondo um exercício íntimo. Primeiro, escolha uma experiência marcante recente – pode ser uma viagem, um aniversário, a festa de ano-novo. Busque lembrar as pessoas presentes; em seguida, tente remontar as ações do episódio. Passeie pelos pormenores e, se for possível, recorde o ambiente, os diálogos, os detalhes. Quanto desse evento você é capaz de revisitar – ainda que de forma imprecisa e não linear, pois essas são características inerentes ao exercício de memória – sem consultar no seu computador a pasta com uma centena de arquivos? Na máquina, provavelmente, constará um panorama do tal dia rememorado, os vídeos e as fotografias convertendo os instantes mais triviais em acontecimentos dignos de recordação. De fato, tudo aquilo que está no mundo é passível de registro visual estético ou documental. No entanto, atualmente, a motivação do clique não é antes estética, nem mesmo mnemônica, pois, se todos os fatos se tornam memória através das imagens, pode-se dizer, também, que nada se tornou memória efetivamente, com singularidade.

boom dos equipamentos digitais que possibilitam a filmagem e fotografia das experiências – muitas vezes, as duas funções em um mesmo artefato – permitiu a reconfiguração da relação entre a sociedade e o imagético. Mais que isso: colaborou para expandir o desejo de visibilidade e engendrar uma nova forma de enfrentamento da memória. É importante frisar que as novas tecnologias permitiram as mudanças, mas não as causaram; colaboraram para elas, mas não as geraram. Porque seria redutor associar o aumento da produção de imagens prioritariamente às condições técnicas de produção, quando profundas questões subjetivas e sociais também estimulam esse quadro. Nas palavras do filósofo Gilles Deleuze, “as máquinas não explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos coletivos dos quais elas são apenas uma parte”.

Não é de hoje que a imagem se tornou um lugar de afirmação dos indivíduos. Em uma sociedade amplamente midiatizada, o desejo de visibilidade faz-se quase inexorável, pois a imagem é capaz de gerar a sensação do estar no mundo. Curiosamente, grande parte dos intelectuais e bem-informados lançam um olhar crítico e negativista sobre os fotógrafos amadores e seus cliques frenéticos. Isso porque os portadores de câmeras, ansiosos por capturar os instantes, estariam fazendo do acontecimento empírico algo menor que o acontecimento imagético. Essa crítica, apontada por uma camada intelectual que “sabe” a forma mais proveitosa e “correta” de relacionar-se com o mundo, reproduz-se e sua parcela de pertinência ofusca o que há de limitado nela.

Se nos debruçarmos sobre essa característica contemporânea antes para compreender que para julgar, perceberemos que estamos diante de outra forma de fruição do mundo. Hoje, quase não enxergamos a olho nu o que está em nossa volta e este não é um “privilégio” dos amadores. Mesmo artistas consagrados passam pelo mundo sem notá-lo, e apenas atentam para suas particularidades quando estão em frente à câmera, algo que o cineasta Eduardo Coutinho já assumiu com naturalidade: “Na hora que eu filmo uma pessoa, eu a amo mais que qualquer coisa. Aliás, quando a câmera está ligada é que eu vejo as pessoas. Eu sou uma pessoa que não olha para o mundo. Sou totalmente distraído, me perco nas ruas, em todas as cidades. Agora, quando eu ligo a câmera e selo os olhos na pessoa, é isso que vale a pena para mim”.

Cada vez mais, são os vídeos e fotografias que dão forma à experiência. Como aponta o professor André Brasil, em seus estudos, as pessoas acionam – e aqui se conserva o duplo sentido de acessar e colocar em funcionamento – o mundo através das câmeras. Pouco a pouco, notamos também que o uso contemporâneo desses equipamentos já não se associa à memória de forma evidente, pois o ato de registrar está e, ao mesmo tempo, não está imbuído de uma preocupação com a posteridade. Apesar de ser mantida certa paranoia da memória, no momento em que os flashes são disparados vivemos antes uma celebração do presente que uma preocupação seletiva (e efetiva) com as recordações. Uma inversão, nesse momento, fica clara: na contemporaneidade, não é a ocorrência singular que merece ser fotografada/filmada, mas o fato de ser fotografada/filmada é que torna a ocorrência singular.

DIÁLOGO
Obviamente, essa nova configuração da relação entre os indivíduos e o imagético reverbera nos espaços da criação audiovisual legitimada. No curta-metragem Flash happy society, de Guto Parente, a compulsão por fotografar e filmar um show serve como metonímia da nossa sociedade. As luzes liberadas ao disparar das câmeras congelam o tempo do filme, assim como o faz com o instante que enquadram. Através do nome do curta e de seu desenrolar hipnótico, o diretor imprime visível crítica sobre o fenômeno que tematiza.

Mais uma vez, o vivenciar e o registrar podem ser apreendidos como duas ações incompatíveis de serem realizadas em plenitude, concomitantemente. No entanto, parece mais provável que nos nossos dias o vivenciar passe, obrigatoriamente, pelo registrar. Já não são as incontáveis fotografias – muitas delas armazenadas em pastas que talvez nunca sejam consultadas, quem sabe até perdidas – que impulsionam o clique, mas o simples ato de fotografar torna-se um fim em si.

Em Pacific, documentário do pernambucano Marcelo Pedroso, a discussão se alarga. O filme, já bastante debatido e comentado pela crítica, não utiliza essa realidade midiática unicamente como conteúdo: ela é também a estrutura, a forma. No longa-metragem, o cineasta se apropria de vídeos produzidos por turistas em um cruzeiro para Fernando de Noronha, nos quais eles se autorregistram, atuam para a câmera. Nenhum material fílmico é utilizado além desses produzidos espontaneamente pelos personagens e que, a princípio, estavam destinados a serem registros pessoais.


No curta mineiro Fantasmas, a captação da imagem da ex-namorada do personagem funciona como uma despedida. Foto: Divulgação

É inevitável imaginar esses vídeos como itens de afirmação, feitos para circular nas redes sociais e para dar testemunho de episódios de vida bem-sucedidos. Por outro lado, também não é improvável que eles fossem engavetados e jamais editados. Independentemente das especulações sobre o futuro dos registros – no caso da inexistência de Pacific –, o fato é que eles são produzidos no tempo do espetáculo e refletem um desejo de visibilidade.

O documentarista Jean Rouch observa que “ao ligar uma câmera, uma privacidade será violada”, mas, diante do dispositivo de Pedroso, essa afirmação parece frágil. Afinal, se eu crio autorregistros espontaneamente – escolho planos, enquadramentos, determino as performances – e, posteriormente, autorizo seu uso, há violação de privacidade? Na instância da filmagem, ao menos, não. As ressignificações estabelecidas no processo de montagem é que poderiam ser conduzidas de forma perversa, o que não se observa no filme.

Sobre esse aspecto, o próprio diretor comenta: “Talvez, ao invés de violada, a privacidade tenha sido compartilhada. É evidente que existe uma coisa meio invasiva em vermos imagens que traduzem códigos interpessoais que, em princípio, não nos dizem respeito e correspondem àquilo que constitui a intimidade daquelas pessoas. Mas, ao mesmo tempo, o fato de terem sido filmados atribui a esses momentos um desejo de visibilidade que lhes é inerente. Acho que, de certa forma, as imagens carregam uma busca pelo reconhecimento, um desejo de serem vistas mesmo, que acaba se efetivando no momento em que os personagens nos cedem o material”.

A atualidade das imagens, a extrema proximidade temporal entre nós e elas, intensificam a nossa criticidade com o que nos é apresentado. Novamente, vemos despertar um sentimento de rejeição no público em relação àquele comportamento e àqueles registros, o que não ocorre quando observamos um filme valorado pelo elemento da nostalgia, como é o caso de Supermemórias, do diretor Danilo Carvalho, que reúne imagens de famílias cearenses em super-8. Acabamos por ignorar que o ato de filmar e fotografar também é lúdico e, como aponta Susan Sontag, no livro Sobre a fotografia, “se tornou um passatempo tão difundido quanto sexo e dança”.

ESQUECIMENTO
Quando as imagens estavam fortemente atreladas à memória histórica, os grupos sociais privilegiavam, em seus registros pessoais, o que deveria ser lembrado e excluíam o que preferiam esquecer. No contemporâneo, no entanto, um paradoxo se instaura. Notamos uma obsessão por aprisionar as experiências em arquivos, sem grande seletividade; um indicativo da supervalorização de uma memória artificial, material.

Ao mesmo tempo, a dificuldade de lembrar naturalmente se intensifica, pois a facilidade gerada por vídeos e fotografias traz consigo o traço da falta de esforço ou vontade de recordar voluntariamente – como o exercício proposto no início do texto pode ter confirmado. De forma bastante simples, a fotógrafa e pesquisadora Isabella Valle sintetiza o fenômeno em questão: “No contemporâneo, o aumento explosivo da memória gera um aumento explosivo do esquecimento”.

A perspectiva freudiana de que a memória é, naturalmente, uma forma de esquecimento e que o esquecimento é uma memória escondida parece sintetizar a postura da coletividade nesse aspecto e toma, em nossos tempos, proporções nunca imaginadas.

Sobre o complexo diálogo entre imagem e memória, um filme chama a atenção por propor o esquecimento a partir do registro. O curta-metragem Fantasmas, do realizador mineiro André Novaes Oliveira, roubou a cena em vários festivais por seu argumento simples e peculiar. Colocando o espectador no lugar exato do voyeurismo, o diretor nos desperta para a extrema vigilância social que há tempos exercemos uns sobre os outros, mas que agora também podem ser facilmente mediadas pelas telinhas das câmeras digitais.

No filme, após captar o que é de seu interesse – a passagem da ex-namorada –, resta ao personagem deixá-la no passado. Nesse caso, o vídeo representa uma despedida, um choque de realidade, uma via para o esquecimento. Aqui, encarar a imagem é determinante para os rumos da memória e da superação; já o enfrentamento com o real é secundário. 

GIANNI PAULA DE MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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