Obviamente, essa nova configuração da relação entre os indivíduos e o imagético reverbera nos espaços da criação audiovisual legitimada. No curta-metragem Flash happy society, de Guto Parente, a compulsão por fotografar e filmar um show serve como metonímia da nossa sociedade. As luzes liberadas ao disparar das câmeras congelam o tempo do filme, assim como o faz com o instante que enquadram. Através do nome do curta e de seu desenrolar hipnótico, o diretor imprime visível crítica sobre o fenômeno que tematiza.
Mais uma vez, o vivenciar e o registrar podem ser apreendidos como duas ações incompatíveis de serem realizadas em plenitude, concomitantemente. No entanto, parece mais provável que nos nossos dias o vivenciar passe, obrigatoriamente, pelo registrar. Já não são as incontáveis fotografias – muitas delas armazenadas em pastas que talvez nunca sejam consultadas, quem sabe até perdidas – que impulsionam o clique, mas o simples ato de fotografar torna-se um fim em si.
Em Pacific, documentário do pernambucano Marcelo Pedroso, a discussão se alarga. O filme, já bastante debatido e comentado pela crítica, não utiliza essa realidade midiática unicamente como conteúdo: ela é também a estrutura, a forma. No longa-metragem, o cineasta se apropria de vídeos produzidos por turistas em um cruzeiro para Fernando de Noronha, nos quais eles se autorregistram, atuam para a câmera. Nenhum material fílmico é utilizado além desses produzidos espontaneamente pelos personagens e que, a princípio, estavam destinados a serem registros pessoais.
No curta mineiro Fantasmas, a captação da imagem da ex-namorada do personagem funciona como uma despedida. Foto: Divulgação
É inevitável imaginar esses vídeos como itens de afirmação, feitos para circular nas redes sociais e para dar testemunho de episódios de vida bem-sucedidos. Por outro lado, também não é improvável que eles fossem engavetados e jamais editados. Independentemente das especulações sobre o futuro dos registros – no caso da inexistência de Pacific –, o fato é que eles são produzidos no tempo do espetáculo e refletem um desejo de visibilidade.
O documentarista Jean Rouch observa que “ao ligar uma câmera, uma privacidade será violada”, mas, diante do dispositivo de Pedroso, essa afirmação parece frágil. Afinal, se eu crio autorregistros espontaneamente – escolho planos, enquadramentos, determino as performances – e, posteriormente, autorizo seu uso, há violação de privacidade? Na instância da filmagem, ao menos, não. As ressignificações estabelecidas no processo de montagem é que poderiam ser conduzidas de forma perversa, o que não se observa no filme.
Sobre esse aspecto, o próprio diretor comenta: “Talvez, ao invés de violada, a privacidade tenha sido compartilhada. É evidente que existe uma coisa meio invasiva em vermos imagens que traduzem códigos interpessoais que, em princípio, não nos dizem respeito e correspondem àquilo que constitui a intimidade daquelas pessoas. Mas, ao mesmo tempo, o fato de terem sido filmados atribui a esses momentos um desejo de visibilidade que lhes é inerente. Acho que, de certa forma, as imagens carregam uma busca pelo reconhecimento, um desejo de serem vistas mesmo, que acaba se efetivando no momento em que os personagens nos cedem o material”.
A atualidade das imagens, a extrema proximidade temporal entre nós e elas, intensificam a nossa criticidade com o que nos é apresentado. Novamente, vemos despertar um sentimento de rejeição no público em relação àquele comportamento e àqueles registros, o que não ocorre quando observamos um filme valorado pelo elemento da nostalgia, como é o caso de Supermemórias, do diretor Danilo Carvalho, que reúne imagens de famílias cearenses em super-8. Acabamos por ignorar que o ato de filmar e fotografar também é lúdico e, como aponta Susan Sontag, no livro Sobre a fotografia, “se tornou um passatempo tão difundido quanto sexo e dança”.
ESQUECIMENTO
Quando as imagens estavam fortemente atreladas à memória histórica, os grupos sociais privilegiavam, em seus registros pessoais, o que deveria ser lembrado e excluíam o que preferiam esquecer. No contemporâneo, no entanto, um paradoxo se instaura. Notamos uma obsessão por aprisionar as experiências em arquivos, sem grande seletividade; um indicativo da supervalorização de uma memória artificial, material.
Ao mesmo tempo, a dificuldade de lembrar naturalmente se intensifica, pois a facilidade gerada por vídeos e fotografias traz consigo o traço da falta de esforço ou vontade de recordar voluntariamente – como o exercício proposto no início do texto pode ter confirmado. De forma bastante simples, a fotógrafa e pesquisadora Isabella Valle sintetiza o fenômeno em questão: “No contemporâneo, o aumento explosivo da memória gera um aumento explosivo do esquecimento”.
A perspectiva freudiana de que a memória é, naturalmente, uma forma de esquecimento e que o esquecimento é uma memória escondida parece sintetizar a postura da coletividade nesse aspecto e toma, em nossos tempos, proporções nunca imaginadas.
Sobre o complexo diálogo entre imagem e memória, um filme chama a atenção por propor o esquecimento a partir do registro. O curta-metragem Fantasmas, do realizador mineiro André Novaes Oliveira, roubou a cena em vários festivais por seu argumento simples e peculiar. Colocando o espectador no lugar exato do voyeurismo, o diretor nos desperta para a extrema vigilância social que há tempos exercemos uns sobre os outros, mas que agora também podem ser facilmente mediadas pelas telinhas das câmeras digitais.
No filme, após captar o que é de seu interesse – a passagem da ex-namorada –, resta ao personagem deixá-la no passado. Nesse caso, o vídeo representa uma despedida, um choque de realidade, uma via para o esquecimento. Aqui, encarar a imagem é determinante para os rumos da memória e da superação; já o enfrentamento com o real é secundário.
GIANNI PAULA DE MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.